Tremelique
Houve um terremoto de seis na escala de Richter, ele abalou muitas casas, pondo várias abaixo, no chão.
No alto de uma ladeira isolada da cidade, na Rua Afago Malfeitor, na altura do número mil e trezentos, lugar agradável, fresquinho, com muitas árvores projetando suas sombras no chão, e flores crescendo desde canteiros e jardineiras até nas guias e bueiros. Havia uma caixa d'água suspensa num esqueleto de metal dos mais resistentes, muito bem arquitetada e melhor ainda instalada, mas a infortunada estrutura não resistiu ao forte sismo ocorrido, cedeu e pôs-se a deitar no chão, despejando com força a água no chão. As águas levaram as flores nas guias, as flores nos bueiros, as flores do chão, as águas levaram todas embora, enquanto as árvores seguiam o fluxo aquo-floral por cima, com suas folhas a farfalhar, talvez tentassem as flores alcançar, mas nisso só punham suas folhas a arrancar, acrescendo de folhas as águas que já iam embora, as águas que corriam as ruas sombreadas daquela bela ladeira, iam em direção ao calor escaldante da Av. Dr. Escarrante Benigno, onde o Sol incidia com força e vigor, castigando o asfalto com seu calor, derretendo-o... Derretendo-o... O asfalto ia derretendo, querendo escapar pelas guias, em direção aos bueiros... Mas as águas furibundas não deixaram, pegaram o asfalto no ato. O asfalto congelou sua feição de espanto. As águas que deslizavam, levaram do asfalto a poeira e fuligem. As águas tropeçavam nas calçadas, molhavam e encharcavam calças de brim ou linho de senhores, rapazes, moças e mulheres, ensopavam tênis e sapatos, tamancos e sandálias e até molhavam a barra das saias e vestidos de moças e senhoras passantes e, como sempre, ausentes dessa realidade. As águas batiam em carros inertes pelo susto sísmico, e até entravam em alguns sem pedir licença. Invadiam casas, mercados, padarias e cabeleireiros, levando mais poeira, farelos e cabelos consigo. As águas seguiam o curso pelas ruas perpendiculares e depois paralelas àquela Avenida, apaziguando a correria enquanto era engolida pelos bueiros até parar num Tietê da vida.
As águas passaram...
Jazia a caixa d’água no chão, lamentando sua perdição.