[A]Maria

Ele me disse: sem mágoas. O que isso quer dizer? Fique quieta no seu canto, não me perturbe. Me esqueça.

Não. Não farei propaganda, nem me auto-promoverei. Jamais. Isso seria a antítese de quem sou e do que respeito e eu me respeito. Pingam limão em mim e, às vezes, ainda sou doce. Mas nem sempre. Acho que quando há um secreto envolvimento com leite, eu desando. Viro manteiga. Derreto. Talho. Coalho. Queijo para ratos.

Há algo impessoal dentro de mim que não é corrupto, nem corrompível. Há algo não apodrecível, ainda que eu morra. Ainda que eu eu fique ali, exposta às moscas, não apodrecerei. Tenho vergonha do apodrecimento dos seres. Tenho vergonha de ser mulher, algumas vezes. Tenho vergonha do que vejo em algumas mulheres, tenho vergonha do que elas fazem e, por isso, na maioria dos dias, eu queria ser homem. Quero ser cremada por isso, também. Algo sempre apodrecerá, mas não permito isso para mim. Combinei com meus amigos que façam uma fogueira comigo (ou de mim) no fundo do quintal, o dinheiro que seria gasto no crematório deve servir para a cerveja e a festa. Lágrimas? Talvez eu não receba nenhuma, ou só da minha filha ou dos meus pais, se eu for antes, mas dos outros, não. Que venha a festa.

Toda lua cheia me leva à insônia (juro que eu não sou Sônia) e eu fico perambulando. Ou pela noite, pelas matas, ou na cama. Ela incide direto na minha janela (que nunca fecho) e fico olhando, olhando... às vezes vejo São Jorge, sou louca sim, às vezes me vejo voando por lá, mas nenhuma vassoura suportaria o peso dos meus pecados, então vôo com asas de anjos e isso é heresia. Sou herege por convicção.

Nunca sei se meu pensamento está adiante ou se estou atrás do pensamento, sei que ele traz qualquer coisa entre o que sou e o que gostaria de ser e entre esse espaço há um caminho imenso.

Talvez ser amada por ele. Isso é tão pouco, me disseram. Mas nunca ligo para o que me dizem, sou assim, um asno mesmo. Tapada.

Uma vez meu pai me contou uma fábula ou verdade, nem sei, ele é poeta e poetas são loucos e inventam coisas, mas ele me contou de um cara que viu um cara passando com um carro e derrubou uma maleta. Ele correu com sua égua e descobriu que a maleta estava cheia de dinheiro. Correu com seu animal, desesperadamente, até conseguir alcançar o carro e entregou a maleta ao dono. Este, ao ver o peão todo esbaforido, com seu animal de trabalho semi-morto pela corrida desenfreada, disse que ele merecia uma corda. Uma corda? - disse o trabalhador. Sim, uma corda. - disse o dono da maleta.

- Eu sou rico, tanto que carrego uma maleta de dinheiro e você quase matou, se é que não matou, seu animal que lhe dá sustento, para me devolver algo que posso arrumar de novo ou que poderia esperar para ser devolvido. Merece uma corda: para enforcar-se.

Será que eu mereço uma corda? Creio que sim.