ANDARILHAR O CANTO NEGRO

– Sou apenas um crente de mim mesmo tendo a Poesia como religião.

De onde provém esta tristeza que toma o espectro ancestral? Esta melancolia que fala aos nervos e perfaz a pólvora que levará ao estouro. A tristeza nesta estapafúrdia manhã estilhaça o pensamento e esvai energias num rio de mortes anunciadas. Estou tão só como o vento soprando na pampa. E nada reconstrói o canto do pássaro dentro de mim. A solidão alarga o buraco de amarguras. Pressinto que a tradução do instante reconta sonhos de felicidade e o canto da solidão crava os dentes. O dia seguinte chafurda no lodo da insegurança. Talvez seja o egoísmo da morte carregando seu fardo de penúrias. Ouço gritos daqueles que penam por aí espavoridos na busca de Deus. E o sopro vital assovia o vento nas quinchas do rancho barreado de vivências. Sou apenas um crente de mim mesmo tendo a Poesia como religião. A tristeza do que se come não enche barriga, apenas consome o vazio que arde em brasa nos degraus da lápide de morrer para viver no instante seguinte. O assovio do pássaro negro tem o mavioso bico adunco das carnes putrefatas e estende suas garras à colheita da messe farta. Contestar que é possível estar vivo para sempre, na eternidade em que alguns acreditam. E a vida é um rio que rola entre pedras e viaja polindo as rugas dos insucessos. A condenação ao ser tem os seus meandros. Porque a vida não se entrega mesmo que tenha de lutar contra a correnteza onde o nada é a penúria de si próprio. E o lixo se recicla neste canto de possessão para que este se abra na flor amorosa que abrasa o coração tristonho. Porque é essencial protestar quando a porta se abre à solidão de ser e de estar. E se possa ficar surdo às canções e rezas no espelho das vivências. O meu deus tem pena de mim e consome o que está pútrido, só para que se possa estar pronto para o próximo momento de conflitos entre o bem e o mal. E sinto que cavalgo um seixo rolando acima na cachoeira, enquanto os peixes, meus vizinhos de ocasião, brilham ao sol na piracema. O pássaro negro, um pouco acima, estende suas asas e cobre a dianteira...

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 2013.

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