A Vila do Canta Galo
1
Sentia até o cheiro da chuva. Esquecia os chinelos em disparada para fora da casa rumo à beira do rio esperar o que só ele esperava. O vento procurava por Pedro que procurava chuva, que procurava o rio, e todas as vidas e verdes que aquele moleque tinha a teima de saber adivinhar. Era despido de tudo, entregue, porém seguro pela mesma força abominadora da água do rio, posta com a mesma pressa da chuva trazendo consigo parte de seu todo, fazendo do moleque não só pedaço, mas o regente daquela estrondosa harmonia de água, mata e energia. Pendurava-se em galhos sobre as margens como um macaco, mergulhava contra a corrente, que parecia que as águas mal lhe notavam. Não existia medo. Não havia razão para tal, ele fazia parte do todo.
O vento amenizava e os gritos de Dona Assumpção já eram previsíveis com a baixa da chuva e do rio: “Valha-me Deus, Pedro!”. Já era de praxe a volta desaforada pra casa e seus afazeres, curtindo o restante de seu gozo com Quinzé, o perdigueiro, cachorro malhado bom de faro e muito agitado.
O sol baixa e Dona Assumpção vai acabando de recolher a roupa, angustiada precedendo a chegada do marido vindo da lida e da arruaça. Para o menino e sua irmã, Tininha, a ansiedade enraizou-se em seus peitos, com a força destrutiva que seu pai demarca neles, como se fosse território ou gado. Os três procuravam manter-se à maneira de cada um, mas sem ter a sapiência suficiente para mantê-los por si só e por algum motivo, aquele homem distorcido e conturbado tinha que estar ali.
Seu João Augusto não costumava andar sem a cinta de couro duro trançado, com uma faca de acompanhamento do lado direito dependurada, o gosto de café com pinga grudado no céu da boca, e de todo ritual de sair de casa às 5:30H impecavelmente arrumado, até mesmo pra quem trabalha em um matadouro, e agradece à Deus todos os dias por ter um patrão tão bom que lhe proporcione uma casinha pra morar, uma terrinha para uma criação ( mas só para consumo, nada podia ser vendido. ), um salário razoável para bancar seus vícios e carne para saciar sua família. O resto era luxo. E luxo, segundo padre Gildo, é coisa do diabo e do Doutor Moraes, que é o bendito patrão e merecedor de tal regalia.
2
Naquela noite, o mesmo vento que trouxe a chuva à Pedro ainda pesava ante as goiabeiras, deixando as árvores desfolhadas e os corações aflitos. De todo ritual por João Augusto encenado e encarnado diariamente, neste fora perturbador seu final. Saia do matadouro às 18:00H, sempre em companhia de Jair, Teco e Marinho, parceiros de trabalho, boteco, pescaria, putarias e brigas. O boteco era sempre o mesmo; lá no Seu Alcides, um tio esquecido da parte da mãe de Doutor Moraes, já que na Vila do Cantagalo “o Doutor” só autoriza gente de sua confiança para gerir o comércio local. E lá foram os quatro, bebendo seu truco e gritando sua pinga, como se voltassem a serem crianças novamente, e suas máscaras caíssem não havendo ridículo ou julgamento. É assim que se sente um homem livre de verdade. Verdade entorpecida, misturada com Cinzano.
19:40H. Hora de o Jair deixar o bando. Dona Mirtes, além de ótima cozinheira, era não titubeava em relação ao seu gênero forte e dominante, que faz questão de deixar aflorada e ele, apesar das vistas socias e críticas da família, tem maturidade e amor suficiente para deixar dissipar inveja e conquistar Dona Mirtes diariamente. Após a esculhambação de sempre, ele pede perdão, e ouve mais ou menos uns 4 quilos e meio de conversa. Ele então absorve toda essa energia que veio de uma de certa forma abrupta, quebrando assim toda a cadeia improdutiva, pondo Dona Mirtes no prumo, entendendo-a e lhe dando o devido espaço que uma morena de gênio marcante e corpo esculpido preciso para ele ter o regresso do amor investido pacientemente, tornando-se um homem saciado em todos os aspectos.
“Traz a saideira...!”-grita Marinho com as poucas forças que o álcool ainda não lhe tirou, tentando visualizar a anotação de Seu Alcides nas cadernetas. Pouco importava de quem era a montaria da volta, onde quase sempre Teco confundia seu Cisco com Gajo, o cavalo acinzentado de pelo brilhante de João Augusto. “Vou ter que mandar lavar essa cela de novo!”, mandou o recado, curto e grosso a Teco enquanto trotava ao lado de seu Gajo. Marinho gostava do circo em chamas, se divertia parasitando João Augusto e principalmente Teco, maliciando a sutil entrelinha das relações entre eles seguia se apoiando em sua égua Hera, caçoando como sempre: “Quando é que você vai aprender a se limpar, hein? Quando não é sangue de boi, é bosta que o bebum não limpa! Ha Ha!”. Gajo deu um repique. “Ei, seu bosta! Presta atenção com meu cavalo ou te dou uma nas fuças!”. Era um cavalo manso, que conhecia Teco e os outros e suas baias ficavam próximas. Ele até gostava mais de andar com Teco do que com João por causa das esporas e do jeito manso. Aliás, não era só o jeito, mas a fala, o andar, o sentir, sempre um pouco desligado. Sustentava e cuidava da mãe doente, Dona Eva, por quem ele zelava e amava com furor de um beato diante de um Santo, deixando a casa sempre florida como ela gosta. Mas não queria falar baixo. Gajo aumentava seu passo com o dorso todo arrepiado e crina em pé, soltou um arrepio tão forte que deu folga a cela, incorporando as pernas de Teco ao seu dorso de certa forma tão intensa quanto o brilho disparado no acontecido. Como um flash, saíram fazendo espirrar pedras nas casas pelo caminho e empoeirando as soleiras. Os outros dois vinham em disparada à beira da nuvem de poeira deixada por Gajo e Teco tentando imaginar de que modo e por que Teco faria isso, porém a retaliação só ganhava força na mente de João Augusto. O acinzentado brilhante de Gajo o destacava mesmo à noite, dando-lhe um porte de Pégaso e lhes garanto também que, naquela noite se tivesse asas, Teco iria planar sobre a Vila do Cantagalo. A égua Hera não deu conta e arriou ainda com Marinho desorientado por conta da bebida, da correria e da atitude de Gajo e Teco que foram parar a dez minutos à cavalo da ponte que da acesso ao casarão do Doutor Moraes, graças a interferência abrupta do chicote de João Augusto nos lombos de Gajo e Teco, simultaneamente, o que fez Teco sair do transe em que se pôs movido por um sentimento nunca antes desfrutado, porém sentido. Não sentia suas pernas sobre Gajo e ao mesmo tempo, lhe era garantida uma firmeza em gestos, posturas e reações nunca d’antes degustadas.
Puxou o arreio com toda força fazendo Gajo sentar-se. Olhou para onde estava se situando após a experiência atordoante e se espantou ao ver a ponte: “Minha Nossa Senhora! Como é...” não deu tempo; João Augusto deu um solavanco em Teco que desabou de Gajo, sendo logo sufocado e posto ao severo sermão que cabia mais como tortura: “Seu moleque! O que você pensa que é pra fazer o que fez?! Eu sempre soube que você não tinha responsabilidade mas isso foi o fim! Foi o meu cavalo que a vila viu riscar o chão e vai ser meu nome que vai cair na boca do povo amanhã, seu moleque! Por que não parou o Gajo? Vou te dar uma pisa!”. Os esporros de João Augusto em Teco eram constantes por vários motivos; João tomava de parâmetro essencial para garantia própria sua envergadura enorme e os dois anos mais velhos que Teco, que sempre garantiu a parceria meio que estranha entre o mirradinho envergonhado bom de cálculo e o menino criado à fubá, arrogante até com a diretora.
3
Gajo, assustado evidentemente sumiu no breu. Teco reagiu de outra maneira. Olhou João Augusto nos olhos encarando-o como se mostrasse a ele que sua alma estava emersa em uma nova energia que parecia transbordar, pondo-o em pânico pela primeira vez na vida. De repente, um frio cortante raramente lembrado de ter sentido por essas bandas, foi profundamente sentido por João Augusto, que lhe congelou a espinha imobilizando-o sob Teco. A secura do ar atingiu seus lábios e boca, rachados, abertos e pálidos contrastando com a vermelhidão de seu nariz e seus olhos, estes ainda prisioneiros e à mercê de Teco. E por alguns instantes, João Augusto caiu. Quando falo cair é ser dominado na essência por um único e destrutivo sentimento; medo. Quando se tem só o medo, é como deixar nossa alma sem escudo contra as humanidades que traem a confiança e faz cair no vazio. É estar no próprio vazio dividindo medo com medo.
4
As luzes amareladas no alto da ponte eram o alerta que Teco precisava para retomar seu eixo e evitar que os homens do Doutor Moraes, chamado de “Os Parrudos” e que tinham notado um reboliço na redondeza, os pegassem circulando naquelas terras. Tomou o ainda vegetativo João Augusto nos ombros como se leva um saco de batatas e o transferiu para o lombo de Cisco, pondo-o da igual maneira e saiu em disparate rumo de volta à Vila tentando reagrupar pensamentos humanos dentro de sua mente quente e instintiva. Tentava restabelecer uma conexão com sua realidade, mas sua mente não caia mais nestes artifícios de auto boicote onde colocava mais um peso em suas costas lembrando-se dos fatos passados, deixando-o cada vez menor diante de qualquer um. Não não conseguia mais sentir pena de si mesmo, causando-lhe certa decepção pela falta de percepção. Sua confiança era maior que todas as indagações somadas, deixando sua consciência mais viva e no controle dos seus atos.
23:00H. Havia um poço, largo e bem regado, situado às costas dos cochos e perto da casa de João Augusto, este que seria reanimado justamente neste poço por Teco que o segurava pelos fundilhos com uma mão, e pelo colarinho com a outra. Irônico, pois a idêntica cena era retratada na juventude com os papéis trocados e, por mais que corresse sangue nas veias de Teco, a única certeza que ele tinha foi que naquela noite tudo que ele pensava, tinha sofrido uma interferência ou algo parecido e então, pegou o amigo todo ensopado pelos braços e o deixou no quintal de sua casa: “Não consigo pedir desculpa.”- disse Teco à João e a si mesmo antes de ir.
Pedro ouviu um barulho nos fundos da casa. Sua mãe sempre assustada mandou o menino ficar quieto, rezando pra que fosse só um gambá, mas Pedro sabia que não era. Ela tirou uma vela do maço e acendeu no altarzinho no canto da sala enquanto rezava aos sussurros. Tininha espreitava felinamente através da cortina da sala a varanda, esperando seu pai, “ficçionando” sua entrada triunfal em cima de Gajo, como se fosse Napoleão voltando vitorioso de terras nórdicas. A casa era pequena, de três cômodos e um banheiro do lado de fora, chão de cimento vermelho e brilhoso de cera barata, mas sempre impecável devido ao capricho de D. Assumpção. Mesmo se fosse algum gambá, Quinzé tinha dado o alerta embora estranhamente não causasse alvoroço com os ruídos vindos do galinheiro então, sorrateiramente, Pedro fora checar sem que sua mãe percebesse. Foi andando em meia ponta com uma pua à tira colo mais grossa que seu braço, falando baixinho em tom de convencimento que era só um lagarto Teiú querendo alguns ovos, até ouvir gemidos de um homem. Ficou estático processando a nova informação, tentando em vão negar que tinha ouvido a voz de um homem, quando um vento lhe arrebate de cima para baixo, muito frio, porém com uma movimentação que dançava em Pedro. Arrepiou-se inteiro e não sabia o que fazer naquele breu horripilante, sentindo um frio absurdamente novo e solitário. Esperou imóvel, contrariando o vento que lhe chocava com seu pânico e, como se não houvesse outra possibilidade e fixou o olhar na direção onde julgou ter vindo o assombro, sem saber se rezava para ouvi-lo novamente e identifica-lo logo ou se para seu pai aparecesse e acabar logo com isso, mesmo à custa de uns cascudos pela covardia. Foi ai que Pedro reparou em Quinzé, e em seu abanar de rabo. “É o pai?!” – o perdigueiro latiu em resposta. João Augusto balbuciou algumas palavras enquanto se arrastava atrás do galinheiro rumo à porta de entrada, movido pelos latidos e dores de cabeça insuportáveis, quando sentiu uma mão no seu braço e teve a intenção de revidar, sem sucesso.
Dona Assumpção ficou assustada. Enquanto levava o marido ensopado e sujo para dentro de casa sob os olhares arregalados das duas crianças, tentava chegar numa lógica e ligar João Augusto ao estado presente. Verificou seus pertences; carteira, dinheiro, documentos, cigarro... Roubado não tinha sido. Elevou levemente o olhar, como se agradecesse e sentou o marido à mesa. Perguntou-lhe sobre Gajo, e “quantas” tinha tomado, permanecendo ele em silêncio. “Parece que foi caçar tatus, homem, quantas você bebeu?!”. João impulsionou seu braço direito para cima e o largou em cima da mesa desfazendo a trocha preparada com sua janta. Os semblantes endureceram e o medo que se limitava a João Augusto se instalou na pequena casa recuando Dona Assumpção e as crianças até se trancarem no quarto delas, e lá elas ficaram até sentirem que suas espinhas não arrepiavam mais e voltar a sentir a mesma brisa da noite. A matriarca foi até seu quarto, viu João Augusto deitado como um desmaiado. Tirou-lhe as botas, as calças, a cinta enfim, todo ritual que lhe compete. Sentou numa cadeira de junco bem à quina do quarto, com um xale verde escuro às costas e uma manta cinza, bem pesada, tipo “sapeca-neguinho” dos joelhos para baixo, a fim de evitar a friagem severa nas madrugadas de outubro. Severa até por demais em tal noite tão estrondosa, mas Dona Assumpção ficou sentada focando-o com olhos de lince, medindo-o em cada piscada como se tentasse ler seu pensamento. Sentia nojo pelo cheiro de sangue de boi das roupas de João, e a ele também. Para ela a vida era uma longa e dolorosa caminhada cheia de lágrimas, dor, sofrimento, mesmice... Raramente se dava o direito de sorrir, chamada de chata por umas vizinhas, arrogante por outras, sempre esperava o pior das situações ficando quase em estado de pânico por nada e não ficava satisfeita até que alguém fosse “contaminado” com sua energia densa e escura.
Não tinha vaidade, por imposições vindas de tão diferentes caminhos certamente desnecessários pra ela, mas que fazia questão de se agarrar, não gostando nem mesmo de se olhar no espelho, talvez por medo de ver além do que possa suportar e o pior, que é saber e ter a responsabilidade da mudança. Cabelos negros e brilhosos cuidadosamente guardados em pasta de babosa sob um lenço usado dia e noite, ora azul claro devido à irmandade das beatas de padre Gildo, ora preto, branco, verde..., tudo dependia da liturgia. Só os contemplava e os penteava após a janta pronta, depois de tomada banho com sabão de coco e agua fria, sentava-se fronte a uma penteadeira de madeira escura e pesada, de espelhos já turvos e com a areia se soltando, com uma lamparina de um lado pra iluminar e uma caixinha amarela do outro lado onde guardava sua escova, seus brincos e seu colar combinados e dados por seu pai ao fazer a primeira comunhão. E ficava apreciando o fiar daquela cascata negra de sua cabeça até o meio de suas costas daquele que seria possivelmente o único momento dado pela vida a ela mesma.
5
O dia começava cedo naquela casa, todo dia. O vento gelado e denso exalado como um último suspiro que a noite dá antes de deixar o sol sorrir a leste, saia da floresta correndo bem baixo dando o aviso a toda vida que um novo ciclo vem a começar, e às canelas de D. Assumpção que já tem que levantar, tendo vontade ou não. O mesmo sereno puxava os cobertores das crianças mais pra cima, arrumando uma briga boa com os pezinhos descobertos e cada vez mais encolhidos. D. Assumpção alimentava o fogão com lenha e o ferro de passar posteriormente, sendo observada por Quinzé se espreguiçando a beira de suas canelas, e por um enorme gato malhado que surgia esporadicamente no ranchinho deles, ora chamado de Peludo pelas crianças, ora chamado por nomes mais feios por João Augusto, ora chamado só de gato mesmo por D. Assumpção. Mas apesar de toda fama por ela construída, tinha aquele gato como amigo e provavelmente o único.
Como era domingo, as crianças não tinham razão para teimosia ao acordar, pois após a missa não tinham obrigações em casa, só com a molecada na Praça da Estação. Já se jogavam nas cadeiras da cozinha esperando com uma fome que mal cabia em suas barriguinhas; a broa de milho, o café e o leite. A alegria deles era tanta que aquele dia já os pertencia por direito e a Vila, por propriedade, sem repressão ou julgamento, olhando pra cima só se for pra “secar” o tempo e não pra obedecer ninguém. Peludo já roçava os cambitos de Tininha na certeza de que uma casca de pão ou um pedaço de bolo generosamente iria cair sem que ninguém percebesse, tanto quanto a generosidade de D. Assumpção em não perceber tal malícia. Em dois tempos, Pedro já estava com Quinzé na frente da casa dando bom dia á vizinhança, esperando aflito por seu avô Constâncio e seus caramelos espalhados pelos bolsos do terno de brim branco amarelado, que reluzia aos olhos do moleque.
Nem sinal de João Augusto, e ai de quem ousasse lhe acordar. Mas já passava da conta e D. Assumpção tomou coragem de chama-lo, pois a hora da missa já era iminente. Sussurrou o nome dele na entrada do quarto, com metade do corpo para fora como se estivesse numa jaula. Deu mais dois pequenos passos em direção á cama e aumentou o tom da voz. Ambas tentativas em vão. “Vamos homem, hora da missa!”- uma vergonha absurda tomava João Augusto, por mais bebedeiras que colecionasse, dessa, a cabeça não parava de funcionar e de modo errado, causando-lhe uma paralisante dor de cabeça. Sabia que se não respondesse, só ia alimentar sua raiva (sentimento único que o deleitava) e sua dor – “Não vou!”. Disse apertando os olhos por conta dos latejos na cabeça. “ Mas homem, seu pai já está lá fora com as crianças e...” – ele a interrompeu só com o olhar, e uma cara que mais parecia vislumbrar um doente no ápice da sua enfermidade. A fronha do travesseiro tornou-se mais escura por conta da sudorese e nem por isso deixava-se descoberto. Por mais que estivessem casados há 13 anos e alguns meses, nunca se permitiram algum tipo de intimidade fraterna quanto mais o deleite íntimo.
6
E saíram a mãe, o avô e as crianças num passo mais arrastado que apressado. Seu Constâncio tentava chegar mais a fim de saber o por quê do domingo atribulado, mas D. Assumpção estava focada em chegar logo à missa. “Vamos Seu Constâncio! Se o João Augusto não tem responsabilidade, eu tenho!”. E o inseto saltitante ainda teimava em perturbar as orelhas do velho.
Dois guris estavam sentados estrategicamente nos degraus da igreja, só espreitando a chegada dos fiéis com suas roupas e semblantes dominicais. Cada prole vinha de um raio, e esses raios se centravam no sino da paróquia, que só viria parar de badalar após a benção inicial da missa. A igreja do Pe. Gildo tinha um quê de esquisita. Não era nem velha, nem nova. Nem pintada, nem descascada. Nem grande, nem pequena. Nem a sul, nem a norte. Nem um, nem outro. Uma belezura, porém creio que não. “Sejam bem vindos a casa do Pai!”, e logo depois chegaram D. Assumpção com filhos e sogro. Arrumaram-se logo no fundo da nave, sob os olhares contorcidos das senhoras e curiosos dos senhores. A missa progredia, e Teco ainda se coçava por procurar por João Augusto pela igreja, sendo contido por sua mãe, tanto era o espichar de seu pescoço. Aquietou-se e imaginou hipóteses lógicas para o ilógico acontecido. Queria vê-lo e solucionar logo a pendenga, nem se fosse para voltar o que era antes e se fazer de submisso perante a patota. E com as hipóteses, vinham as indagações e os devaneios, as viagens e os discernimentos. “Abençoe-nos, ó Deus Todo Poderoso; Pai, Filho e Espírito Santo, Amém! Sigam em paz, e que o Senhor vos acompanhe!” – finalizou o celebrante. “Graças a Deus!”- respondeu a assembleia. O sino avisou 10 horas e cada qual deveria seguir seu cada qual; as crianças tomavam de assalto a praça e seus arredores; os homens seguiam para Seu Alcides e seu tonel inesgotável; e as senhoras seguiam para a casa numa toada de tartarugas para os afazeres, toada essa medida e pesada assim como a conversa do trajeto (se igualavam numa maestria contagiante). Mas não foi desse modo. As senhoras rodeavam D. Assumpção aos sussurros, curvadas, mesquinhas, e medrosas. Beatas com maridos, digamos assim. Os homens deixando Seu Constâncio contra a parede, querendo saber sobre o alvoroço que o filho causara na noite anterior. Teco surgiu na frente do velho: “Deixem o pobre em paz! Quem fez a arte foi João! Esperem o homem aparecer e aí sim tirem conclusões!”. Jair vem e puxa os dois, exemplo igual feito por D. Mirtes para com D. Assumpção. Enquanto as senhoras ainda “urubuzavam” o caminho deles, os homens indignados mostravam as marcas deixadas na rua e nas soleiras das portas, cheias de cascalhos e poeira. As crianças apenas seguiram a rotina.
Havia uma sudorese absurda. Ensopou duas toalhas e a roupa do corpo, fora a roupa de cama que era quase impossível de esconder (se não molhasse tão acima, jurava que tinha se descompensado a bexiga), ainda fazia algum esforço pra se livrar de todo o pano molhado e salgado sem se importar de compor-se só de ceroulas. Quinzé tinha a função de aparar o coitado, mesmo que ainda lhe sobrassem uns pontapés. A inconstância era seu pensamento, posto que no andar do pobre não houvesse nada de linear. Ainda! Isso aflorava sua aflição, sua vergonha, seu desespero, seu medo, dilatando as pupilas, focando um olhar sem perspectiva, sem brilho, sem meta, sem dó, dando-lhe caráter de apático, anêmico, anormal, porém ávido. João Augusto era só dó.
Já não bastasse a amargura amarela da boca e da cabeça, o fato de ser visto naqueles trajes e estirpe era coisa de improvável fato, e não mais que assustadoramente de repente, sentiu uma mão úmida e quente no dorso alto. Só podia ser ela e sua essência de macela. “Quis te ver... Tenho que ir! Toma juízo e me procura!”. Saiu pelos fundos a tempo de Tininha abrir o portão da casa, seguida por sua mãe.
D. Assumpção farejava João até encontra-lo sentado à mesa, com um copo d’água meio vazio. Um pouco mais recomposto, de calças e camisa, mas de certo que esta é amassada e com botões alternados. Ao vê-la levantou, retomou seu prumo e a encarou com seriedade e um respeito nunca d’antes tido, chamando-lhe para o quarto, sem antes pedir a benção de seu pai, pedindo-lhe desculpas. Fechou a porta e sentou-se. D. Assumpção ficara estática esperando o próximo coice ou sermão infundado e infindável. “Pra que esse espanto na cara? Quero te falar uma coisa, e preciso que você se sente.” Sentou-se. “Queria te pedir desculpas por ontem e por hoje. Bebi demais e tirei umas bigas* com Teco, mas resolverei isso bem rápido.” Ela o olhou confusa, mirou o chão e suspirou. “Tenho que fazer o almoço. Tira essa camisa que dou um jeito!” Saiu sem olhar os lados, quase que levando a porta no cocuruto. Pedro deu licença pra sua mãe à beira do fogão enquanto se ocupava em talhar varetas de bambu. Tininha tinha um olho em sua boneca de pano escuro, e o outro nas reações dos pais. Esperou sua camisa e saiu, dizendo que voltava cedo. Inédito.
7
Uns deitados sobre o balcão, outros em mesas e no chão. Mesmo pra um domingo agitado, as coisas no Seu Alcides não alteravam demasiadamente. Por clareza que, sussurros de timbre grave abafavam o som imundice alcoólica derramada de bocas mais abertas e podres que o normal, já que tais sussurros tinham entrelaçamentos delirantes e cheio de julgamentos a João Augusto. Teco não deu as caras, enquanto Marinho adorou toda a situação onde usava sua proximidade com Teco e João para ser o centro dos olhares e perguntas. Tomou os cadáveres dos amigos e os fez de trampolim para uma moral que nem de lentes, era possível encontrar no dito cujo, tecendo personalidades inexistentes e relações infames.
O boteco era disposto onde o imenso balcão de madeira talhada circundava no centro, porém com uma semi divisória onde segregava o atendimento de senhoras e crianças pela porta sul e assim evitava olhares famintos e línguas maldosas dos peões, que adentravam pela porta norte e ali se instalavam, mas ainda sim, as moças ouviam um coro de bobagens e grunhidos impossíveis de não serem ouvidos. Marinho debruçava sempre à quina dos petiscos para roubar um e outro na distração de Seu Alcides e que em especial, tal canto se tornou seu palanque e palco, fazendo o propósito de ser ouvido pelos dois lados. O lugar já se esvaziava e ainda Marinho balbuciava asneiras sobre João Augusto quando Peteca, menino mirradinho e falador, vindo de não sei onde e que trabalha para Seu Alcides, foi atender o outro lado, chamado por um sino posto na batente.
“O Teco é um bunda mole; bebe, pega o cavalo errado, abusa e sai correndo! O João Augusto é um manso; fosse eu, tinha mostrado quem é homem e quem é moleque! Vocês já devem ter percebido que sou o mais centrado de todos! Gosto do certo... Vejam os filhos do João, como são esquisitos... Minha filha não! Crio ali, ó... na cartilha!”. Peteca voltou com um riso tão travesso no canto da boca que Seu Alcides grudou no menino até ele falar: “Olha a menina Isabel dando a volta...”. A pele alva encerrou todas as conversas, cerrou todas as bocas, emudeceu todas as vozes. Isabel entrou de cabelos esvoaçantes, trazida pelo vento leste, fazendo a caboclada segurar os chapéus e os corações, sem ver ninguém a sua frente foi direto em seu pai, furiosa e revoltosa tal como furacão: “Isso é covardia! Nem Teco e nem João Augusto estão aqui pra te desmentir! Eles são melhores que você!”. Marinho ouviu tudo em pé, entupido pelo sermão da filha, encarando-a. Se antes buscava pompas, agora almejava um buraco. Virou-lhe as costas da mão, faltando-lhe coragem em completar o movimento que a calaria.
Antes de tomar-lhe pelo braço e a guinchar para a casa pelo ziguezague das pernas tortas de cachaça, outro silêncio precedeu outra chegada.
A caminhonete branca parou sob as jabuticabeiras afugentando as galinhas em volta. A cachorrada até saia do chão ao ladrar para Dr. Moraes e para Os Parrudos. Os bêbados ficavam sóbrios, as prosas mais curtas para não dizer mudas e não havia ganhador no truco... Coisa de pai e filho. Chegava sempre rindo, abraçando a criançada, perguntando da vida pro pessoal. Neste domingo estava um tanto que sisudo, caminhando um pouco mais devagar, focando seus passos, fazendo uma trilha de botinas brancas, das jabuticabeiras até a porta norte da venda de Seu Alcides. Volta e meia virava-se a um dos parrudos e trocava meia dúzia de palavras e gestos pouco indescritíveis.
“Boa tarde!” – curvando-se de chapéu na mão – “Meu povo, o tempo tá meio fechado pra essa época do ano. Acho bom meu povo tomar o rumo pra não carecer de galocha nem urubu de mão!”. Com a mensagem passada, cada qual tomou seu rumo sem prosa, sem hora e muito sem jeito. O moleque Peteca já tinha se adiantado e todas as janelas e portas se achavam cerradas. Dr. Moraes sentou-se na mesma cadeira de praxe, com o assento forrado a linho... Amarelo ou amarelado? O que se sabe é que a roupa branca do homem se sobressaía ante o trapo. Impecável. Era o que traduzia a imagem do doutor; parecia que lhe era de nascença o bigode volumoso e afinado, sem que lhe mostrasse pelo algum na bochecha; roupa sem retoques, toda em goma e exalando lavanda; chapéu imponente, conforme o dono; tudo branco, exceto pelas abotoaduras reais. Água de colônia e bafo de uísque, sua presença tomava de assalto qualquer que fosse a ocasião ou evento, visto também o tamanho da ambição que fica dentro dos seus olhos e no coração.
“Meu grande amigo Alcides... (longa pausa). Minha estima por sua pessoa me deixa tocado! É praticamente da minha família. Não que os outros não sejam, mas o senhor é parente da minha Percilia e merece minha atenção.” O velho ouvia hipnotizado. “Me chegou uma história meio torta. Alguns caboclinhos passaram da conta no sereno anterior e arrumaram arruaça na minha vila. Me conta mais, meu amigo!”. O doutor levantou o dedo e Peteca se pôs a deixa-los de garganta molhada. Seu Alcides reclinou ao trago e foi gaguejando a resposta: - “É... Pelo que vi dentro do boteco foi só um truquinho besta, meia dúzia cervejas e algumas pinguinhas. Pela boca desses pingaiadas se ouve um monte de bobagens e mesquinharias.”. Nem cara de besta o homem tinha. “Me facilita as coisas, meu amigo. O ritmo das coisas não se alteram da inércia. Me conte tudo direitinho, por favor.”. Aí o velho tomou um trago e lhe falou de todo o acontecido e as suas repercussões. Doutor Moraes ouviu com a atenção e a postura de uma estátua, deu-lhe um agrado e tomou o rumo da ponte. Como já estava escuro, não se pode ver o amenizar da escuridão.
O cheiro rubro e rançoso ventou mais cedo este ano. Tem uma época do ano em que, não se sabe ao certo o motivo, o matadouro passa por uma espécie de faxina. Todos os funcionários recebem férias (as únicas), o gado muda de lugar, deixando os estábulos pela parte mais alta e extrema da vila, onde se é proibido de chegar. Os Parrudos acumulam vigilâncias pela vila, vendo o movimento em seu Alcides, na praça contornada pelas moças e crianças, até passar as férias coletivas e as possíveis confusões trazidas pelo ócio.
João Augusto se levantou logo depois de D. Assumpção. Tomou seu banho, tremendo de frio, porém menos irritado. Vestiu-se todo, tomou seu café com pinga, passou a mão no arreio e tomou o rumo para o trabalho sem que a mulher pudesse lhe atentar de tal. Pedro tentou lhe alcançar e ficou em meio à poeira. Dessa vez João não fez cortesia à vizinhança. Trotou como na noite da confusão e o pensamento pior. Só pensava no trabalho e como ele lhe fazia esquecer as tormentas, voltando a ser o velho e o velho João Augusto. O terreno do percurso era íngreme, com pedras escorregadias e barro viscoso, de gramínea baixa, amarela e grosseira, mas que agradava a montaria. O vento era de desordem, sempre. Poderia ser pela falta de vegetação densa ou por ser um lugar tão alto, que se contemplava toda a vila, ou tão baixo que não se podia ver a beleza da mata e seus pertences, nem o sorriso dos moleques arteiros. Chegou à porteira do matadouro e topou com o cadeado. Franziu-se e fez menção a estourar tal obstáculo, ficou furioso e descontou em Gajo. O alazão já não era simpatizante do terreno, tanto que as baias se situavam logo após a entrada principal e principalmente longe da matança. A partida era conturbada pelo odor que irritava tanto os bichos quanto os ensanguentados. Saíram meio de lado, meio derrapando, amedrontados. Seguiram até Seu Alcides.