Parar de escrever

Hoje amanheceu em mim uma ideia insensata que é plena de sensatez: parar de escrever. Deixei de pensar nisso e, por inicialmente achar absurdo, esqueci. Retomei à tarde a ideia que veio de volta como onda impetuosa: eu quero parar de escrever. Tentar entender as razões disso é só mais um dilema entre tantos que se pode ter alguém que pensa que pode tentar entender as coisas como elas realmente são. As coisas simplesmente não colaboram com nossas conclusões e vivem desmentindo nossas mas espetaculares descobertas. Não me canso de dizer que as coisas são o que são.
Mas a ideia já tinha me perturbado o suficiente. “Conversei” com os meus escritos, mas eles resolveram por não me dizer nada. Afinal, eles já estavam escritos, o que mais poderiam dizer além do que já foi dito? Seria necessário, então, conversar com os meus pensamentos, pois são eles que são os primeiros a apanhar a palavra de onde ela vem. Mas os pensamentos tem por costume enganar, disfarçar, dissimular, confundir os significados, confundir tudo o que há entre o dizer e o querer dizer. Os pensamentos não são muito confiáveis, são livres demais, selvagens demais, indomáveis. Então só me resta a imaginação. Mas nunca imagino onde encontrá-la, porque ela tem o dom de nunca estar onde imagino que esteja. Está sempre onde quer, faz o que bem entende, não atende nunca os meus anseios. Ela vive de mim em mim fora de mim.
Mas a ideia ficou ainda martelando: parar de escrever. Agora só me restam a capacidade e a necessidade de indagar, o que é mais proveitoso, o modo mais prático para se tentar compreender uma ideia. Portanto, tenho que indagar: por que parar de escrever?
Acontece que eu não faço a mínima ideia de por que quero parar de escrever. E não costumo começar as minhas indagações indo direto aos porquês. Eu começo sempre minhas indagações tentando entender “o que” acontece e não “por que” acontece. Os motivos, me parece, só são necessários na parte final da reflexão.
E é por este ponto que começo: o que acontece que me faz sentir vontade de parar de escrever? O que acontece quando escrevo?
Um: eu quebro o silêncio, que sempre me é tão valioso. Abro as portas de minha intimidade, ainda que de modo velado, que poucos dos que me conhecem são capazes de entender. E minha intimidade está sempre melhor resguardada no silêncio. E quando quebro o silêncio é como se algo me escapasse. Assim, o silêncio é o meu salvo-conduto para trafegar na realidade sem a necessidade de ser, de ser algo, de ser alguém, de ser alguma coisa, de ser o que querem, de ser o que esperam. E eliminar essa necessidade de ser é o que me faz poder ser livre e seguir livremente não sendo. Porque de antemão eu não sou. Sei que para ser é preciso quebrar o silêncio.
Dois: escrevendo eu resolvo os dilemas, mas nem sempre da forma que quero ou da forma que preciso. Porque depois de ter escrito eu não faço. É como se o que eu tinha que fazer já tivesse sido feito. E essa ilusão inconsciente é perniciosa para aquele que pensa muito. Ainda que eu sofra pelo não feito, já está escrito, portanto, resolvido enquanto dilema. Parece simples, mas não é. Isto é uma catarse completamente desnecessária. É um saco fundo onde eu jogo só as que são minhas de todas as dores do mundo. E depois padeço da dita ilusão inconsciente e fico a supor que não preciso de mais nada. Falsa tranquilidade, falsa paz de espírito. Sou eu quem alimenta o vulcão que vai me devorar.
Três: escrever é a atividade mais solitária que existe. Pelo menos para mim é assim, posto que agora todos dormem e eu me vejo aqui escravizado por essa necessidade inexplicável. Quem escreve tem que se fazer solitário, tem que entrar fundo em si mesmo, trancar todas as portas e janelas e ficar ali no escuro esperando que algo apareça, que algo aconteça, que algo se revele, algo que prevaleça para essa necessidade de estar em silêncio. Só a hora da morte é mais solitária do que o ato de escrever. Para escrever é preciso entrar na floresta na noite mais escura, sair para encarar o lá fora de todas as tempestades, mesmo as maiores e as piores. Tem que permanecer quarenta dias no deserto, em busca de si mesmo, tentando se perder para se encontrar, entregue à aridez ensimesmado de fome e sede e completamente tomado pelo medo, de um medo próximo, do que é e está perto, de um medo certo, provável, possível. De um medo aceitável. Escrever é como se deixar morrer só para que todo o silêncio seja quebrado, sem gozar da certeza de que poderá renascer depois de que tudo tenha sido dito. Escrever é como se transformar a cada instante, mudar a cada passo, se desfazer no caminho, se refazer sozinho, sangrar a cada palavra que nasce rasgando-nos por dentro. Escrever é em mim tudo o que dói.
Poderia enumerar mais tantos motivos quantos fossem necessários, mas só esses parecem já servir para o que se pretende, ou seja, escrever para entender as razões de querer parar de escrever. Irônico e insólito.
Parece que quero parar de escrever para poder viver a vida, uma vida que seja como der e vier, como puder. Porque estou sempre escrevendo antes o que não vou ver, o que não vou ter, o que não vou sentir nem saber.

E com todos os diabos! Não sei para que serve tanta palavra escrita, quando para tudo o que eu queria três palavras apenas já resolveriam tudo: eu te amo! Pronto. Eis aqui o resumo do insofismável e infinito arcabouço de todos os nossos desejos. O amor, o velho amor que permanece o mesmo de sempre, mesmo com essas novas roupagens.

Acontece também que escrevo todo dia. Isto não há ninguém que saiba, pelo menos até agora. Escrevo todo dia! Como se este pouco que sei que sou pudesse ter alguma importância. Como se este muito do que não sou pudesse ter alguma relevância. Escrevo todo dia! Todo dia um pouco, como se fosse uma oração, a aproximação mais perfeita de algo em mim que não seja matéria, se é que algo assim existe. Escrevo todo dia como se construísse para além de mim uma posteridade para todas aquelas coisas nas quais eu não acredito.
E agora há entre nós uma distância que nenhuma palavra poderá desfazer. Há este abismo, esta impossibilidade repleta de nuances, este deserto intransponível e esta floresta impensável na qual eu me perco sempre na noite mais escura. Há este silêncio, eu diria, este silêncio eterno e absoluto, porque estou matando todas as palavras com as quais eu poderia quebrá-lo. E escrever tem sido o modo pelo qual eu faço cada palavra nascer somente para que possa matá-las.
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 30/09/2013
Reeditado em 06/02/2021
Código do texto: T4504291
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.