O poder do fogo/ O fogo do poder

humanidade? Bem, quando conseguimos fazer o fogo conseguimos dominar os animais, viramos os reis da floresta, e hoje estamos no medíocre topo da cadeia alimentar, e no fundo do poço que chamam de raciocínio lógico, sofremos com a racionalidade que nos perturba, somos todos no fundo, animais.

As chamas eram consumidas pelo oxigênio, e também pelos olhos de Lúcia, que "letargicamente" encolhida entre os lençóis de sua cama encarava secamente o queimar do carvão em sua lareira. Não existe algo mais que simbólico do que, com a cabeça vazia, encarar uma queima, a morte de algo orgânico, e Lúcia o estava fazendo, mas sem pensar nisso tudo, ela estava apenas admirando uma das invenções do homem, o fogo, e repassando na memória tudo aquilo que acontecera em sua curta e intensa vida.

A polissemia encontrada nas palavras no nosso dia a dia nos permite utilizar a palavra fogo para algumas situações diferentes e usar a palavra com sentidos opostos. O fogo já se instalara no corpo de Lúcia, quando jovem Lucinha já teve o corpo em brasas consumido pelo prazer de uma relação amorosa, quando criança serelepe e pimpona, Lúcia já se queimou de ansiedade, a hora de comer o bolo nunca chegava para a menina.

A fogueira de emoções já queimara em frente à Lúcia, sua mãe fora cremada, meu Deus, imagino como deve ser, ver um ente querido sendo perdido em cinzas pela gasolina comprada em um posto qualquer, queimando no mesmo intuito de uma lareira, com a mesma intensidade de um fogaréu junino.

A jovem pouco sentiu o desapegar de sua mãe, a pobre Camélia dedicara pouco de seu tempo para a filha, enquanto isso limpava calçadas, areava panelas, apagava brasas de bituca e se preocupava com a criação da menina. Outro momento em que o fogo aparece, destruindo pulmões alheios, fumar é um vício, assim como tragar de tudo aquilo que lhe faz bem, como fez Lúcia sua vida inteira. Nunca se apegou a ninguém dizia a tia, sempre brigava com as amigas dizia a empregada, pois é, Lúcia tomada pelo poder de Ares queimou sentimentos alheios.

No começo de sua adolescência desabrochara uma linda moça, quando chegava a escola, o burburinho começava, a mais bela camélia de todas chegou, Lúcia linda e cheirosa, provocava os garotos, atiçava os corações, enraivecia as rivais e transpirava desprezo. Sempre fora uma boa aluna, muitas vezes elogiada, professores queriam lhe condecorar com a mais nobre sapiência adquirida, mas o orgulho da menina afastava a paciência docente.

Ao se deparar com algo que finalmente remexesse com algo interno e intenso, a luxuosa menina quis, nitidamente gritar para o Universo seus sentimentos, mas viu seu coração queimado, por um menino foi maltratada, e pela vida, rejeitada. Nem sempre fora assim para Lúcia, largara a Faculdade de Direito, tinha tudo para se tornar a mais hermética das juízas da região, mas como a ganância falou mais alto resolveu disputar o coração de um tal Sebastião.

Dotada de beleza extravagante e fala mansa a menina depois de tempos conquista o rapaz, o qual provinha de família rica e tinha por ofício cuidar das posses de seu pai, o dinheiro para o casal nunca foi problema, o que não se encaixava era mesmo o sentimento de família, não era fácil para o casal do ano aliar, o inflado ego de Lúcia, com o desdém de Sebastião, casal ali era mera conotação, na emoção sobrava para ambos a solidão. Fisicamente restava ainda a Tião um trecho de atração, porém mais uma vez vemos o orgulho da mulher negar fogo ao garanhão.

Passados alguns anos do coito disfarçado, a cidade como é pequena começou logo a cochichar, rumores iam e vinham e Lúcia para não sair por baixo resolveu com Sebastião se ajeitar, não era fácil para a garota mimada pela vida fazer algo desse tipo, colocar de lado um ego imenso e se ajoelhar diante de seu “inimigo”.Rolaram lágrimas de uma garota mal amada, Sebastião logo a acusou de ser safada, falando que de casamento ali não existia nada, o que só os olhos de Lúcia acusavam era o sentimento latente no coração, que agora pegava fogo com tanta insegurança, o que seria de Lúcia se estivesse de mudança? Seria sua sina ficar sozinha, entregue as baratas pisadas e as bitucas apagadas...

Sempre rompendo em emoção o cérebro da moça trabalhou, e a grávida Lúcia agora falava de uma criança que carregava em seu ventre imaculado, Sebastião desconfiou, mas teve de aceitar as desculpas de Lúcia de uma noite que entre vinhos e cigarros ele semeou a barriga de sua esposa, já é sabido da duração de uma mentira, assim como cigarro pelo fogo, rapidamente é consumida, passaram-se 6 meses e a barriga pouco crescia, até que certa noite de domingo o mundo da garota desabaria.

Parecia mais uma noite normal na mansão da solidão, Sebastião tomava banho, o Sol se punha, os pássaros cantavam a lavadeira também, mas algo estava diferente naquele dia para Lúcia. Adentrando o quarto encontrara em seu criado-mudo uma gaveta aberta, curiosa e astuta como era fez questão de abrir, achou não só a solução de sua vida, mas a destruição da mesma, cartas confidenciadas por Tião, que planejava se juntar com Andorinha, a lavadeira que cantara, a raiva tomou conta da menina.

Gelavam as extremidades, enrijecia a musculatura facial, torrentes de lágrimas jorravam acendia o corpo quente a adrenalina animal. Lúcia era consumida pela ira, seu corpo impulsivo dominara a razão, as cartas foram jogadas na lareira, agora sim, pela primeira vez um amor poderia ser chamado de ardente. Ardia no fogo da ira o amor de Tião e Andorinha, o marido saía do banho, toalha enrolada na cintura, pobre Tião não pode nem se defender, fora paulatina e impulsivamente atacado pelo espeto de brasa que a lareira fornecia...

Não deu para a garota aguentar, ver consumido pela traição sua sanidade mental, sua fortaleza de areia foi tragada pela onda do destino, restava agora na mansão sentimentos dolorosos, a lavadeira começou a chorar, a Lua brilhara lá fora, as baratas festejavam na calçada, as bitucas queimavam agora os doces lábios da solidão, e os lençóis aparavam as lágrimas de sangue dos olhos de paixão.

Gabriel Melo Amorim
Enviado por Gabriel Melo Amorim em 28/09/2013
Código do texto: T4502716
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