Confusão

O tilintar do mensageiro do vento trazia algo inquietante. Ela pôs uma música romântica e, mais uma vez, começou a fazer aquilo em que ao longo dos anos tinha se especializado: sonhar. A realidade é dura demais, um peso insuportável. A realidade nos cobra além das nossas capacidades. O que seria de nós se não fossem os sonhos? Uma multidão de deprimidos suicidas vagando feitos zumbis desejosos da morte, única e verdadeiramente generosa o bastante para, em um gesto de extrema misericórdia, nos libertar da terrível imposição de nos confrontarmos diariamente com a tremenda incapacidade de realizar coisas e sermos pessoas que a nossa limitada condição humana nos impede de alcançar.

Ouvindo aquela música romântica ela, em uma fuga desesperada, inventava outra realidade e no seu delírio ia corrigindo imperfeições, aparando arestas, removendo o lodo do seu caráter e dos outros também. Como um artista perfeccionista, ela esculpia uma nova mulher, pintava um novo cenário e como Deus criava a perfeição. Mas era tão plástica a criação do seu sonho; era tão triste, tão sem vida que seu peito arfante começava a doer, o ar lhe faltava, seu corpo tornava-se pequeno para abrigar tanta dor e tanta ansiedade. Ouvindo àquela música romântica enquanto o tilintar do mensageiro do vento parecia zombar da sua insanidade Ela agora se pensava doente.

E em vórtices cada vez mais violentos deixava-se arrastar pela sua impiedosa miséria aos cantões do medo, a escuridão que aprisiona, confunde e conduz à alma a fonte de todas as incertezas. E Ela tinha medo, e o medo a dominava. O sonho já não a tranqüilizava mais, o ópio do delírio já não mais enganava a dor, a suave e companheira morte tornava-se seu mais temível carrasco brincando com ela, e lá fora tudo vibrava, e ria, e zombava. O vento gritava alto e os seres inanimados agitavam-se com desdém e desprezo pela sua onipotente fraqueza. Ela agora como louca tentava encontrar força na fragilidade, na derrota. Ela fazia memória das lições, das opiniões, dos caminhos apontados por quem nunca trilhou caminhos iguais aos seus. Ela agora remava desesperadamente tentando sair desse mar revolto donde, de tempos em tempos, emerge um monstro gigantesco sedento por lhe destruir, ela rema, rema até não agüentar mais. Exausta, vencida ela se entrega ao turbilhão de pensamentos que como em ondas lhe causa espasmos de dor até que, totalmente entregue ao cansaço, ela se sereniza.

Agora ela anseia a dura realidade, agora ela sofre por viver aprisionada nos sonhos e desejosa por experimentar as magníficas imperfeições da realidade ela chora sozinha. A canção romântica já parou, os monstros da sua imaginação descansam em um canto qualquer do seu delírio. Mas seu peito ainda dói, e ela ainda tem medo, muito medo da presença constante dessa hospede indesejada, essa solidão que se instalou na sua vida e não quer mais ir embora.

E lá fora os seres inanimados choram com ela sensibilizados, e se agitam numa tentativa frenética de enganar a solidão. O tilintar do mensageiro do vendo agora sussurra aos seus ouvidos um acalanto, uma canção de ninar e derrotada ela adormece.

Susana Maria Sobreira

Julho/2007

Maria Sobreira
Enviado por Maria Sobreira em 02/09/2013
Reeditado em 07/08/2020
Código do texto: T4463953
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