Um passeio pelo inferno!

Relato 7- Um passeio pelo inferno

(O mesmo espaço com outra vibração energética.)

“ E quem não vê os anjos e os demônios no bem e no mal que lhe traz a vida, priva sua mente de conhecimentos e sua alma de sentimentos.”

Gibran- Asas partidas.

“Nem tudo são flores” e é com essa verdade clichê que inicio o infeliz relato.

O dia anterior foi sem graça e um tanto frustrante. Quarta-feira, último dia do mês de Julho, minha grande amiga Kaki me ligou e a convidei para passar em minha casa, seu celular tinha ficado comigo desde a última sessão de cogumelos, quando conhecemos o paraíso. Também ainda não tínhamos conversado a respeito do maravilhoso dia, em detalhes individuais. Ela chegou perto das duas da tarde, fumamos, conversamos, e enfim, pela falta de perspectiva do dia, resolvemos sair para qualquer lugar, dar um passeio. Durante o despretensioso banho pensei “ porque não?” ainda tinham alguns cogus que ganhei do amigo Rogério, o qual sou eternamente grata, e já alguns dias pensava em tomar com Berna, mas ele não apareceu nem deu notícias. Só me restava um pouco de receio pelo meu estômago, que há três dias não andava bem, (embora eu tivesse evitando alimentos como carne e frango), incomodava o inchaço.

Enfim, falei da ideia súbita que tive a Kaki, ela se animou toda, e ainda um pouco na dúvida resolvi pensar positivo, relaxar e preparei apenas 2 gramas para as duas, com suco natural de maracujá e logo estávamos no ônibus, em direção a Praia de Ponta Negra-RN, ponto turístico da cidade que se encontra atualmente em ruínas. Não preferíamos este lugar, mas fomos, de certa forma, pela possibilidade viável a nós, e a facilidade (opção) de locomoção pública.

Era fim de tarde quando chegamos à praia. O sol estava perto de se por, o céu era limpo e com nuvens fragmentadas. Tomamos o suco, cada uma um copo, numa pedra em frente ao mar. Na oração pré-ingestão pedi a cura e alívio para meu estômago, e ainda muito amor. Kaki completou pedindo luz e paz. Depois caminhamos a procura de um lugar menos movimentado e mais tranquilo.

Estendemos uma canga na areia, sentamo-nos e a conversa fluía naturalmente. Com poucos minutos os já conhecidos incômodos iniciais apareceram e relaxamos a esperar a superação. O céu estava repleto de cores lindas, com degradês de roxo, verde, azul e rosa. Poucas pessoas caminhavam pela praia. Alguém praticava kitesurf no mar. Eu sentia muito frio. Um aglomerado de pensamento se faziam claros na minha cabeça, todas as respostas num só silêncio. Sobre esta verdade, porém, me abstenho de explicar pela falta de palavras a alcançar certas dimensões inefáveis, pelo mesmo motivo: qualquer denominação aprisiona, limita o sentido da coisa.

As nuvens se transformavam para nós, Kaki ao meu lado sorria maravilhada com a beleza de tudo. Eu ainda sentia muito frio, de forma que pus o casaco que havia levado, enrolei-me com um lenço grande e ainda foi preciso ela me ceder o seu casaco, porque o frio que havia em mim não era normal. Fiquei toda encurvada e me sentia extremamente velha, já em posição fetal, frágil e desamparada num asilo a beira da morte. Ela me olhava e dizia “ amiga, você está tão velhinha! Tão pouquinha!”. Sabia o que ela via, porque eu sentia na pele enrugada e ossos travados pela idade avançada. Não conseguia sequer levantar a cabeça, apenas os olhos fora dos panos, para ver as cores do céu com o sentimento lúcido e tranquilo da iminência do último suspiro. Tudo aquilo era o prenúncio de algo terrível que viria.

Depois de um longo tempo, encolhida e quase com hipotermia, resolvi enfrentar o frio e tentei caminhar pela praia. O vento era forte e meus passos não seguiam o seu curso normal. Parecia bêbada sem controle nos pés. Voltei para onde estava Kaki e logo acima, homens que trabalhavam num hotel descansavam e nos observavam. Lá de baixo podia ouvir suas risadas e as conversas escarnecidas a nós. Caçoavam da gente. Chamei -a para procurarmos outro lugar onde as pessoas não incomodassem tanto. Rapidamente pegamos as coisas e saímos.

O vento agora era quase um ciclone, o céu escureceu de repente e o horizonte não se via mais, era uma névoa densa. Foi difícil caminhar contra o vento forte, tínhamos que fazer um esforço grande e a sensação era de medo. Uma nuvem grande e pertinho de nós se destacava com sua monstruosidade; Parecia um peixe enraivecido querendo nos engolir. Seu olho e a expressão de ataque eram nítidos. O céu estava apocalíptico. Não fazia duas horas que havíamos tomado, mas naquele momento quis ir embora. Kaki tentou suavizar me pedindo tranquilidade. Não só estava com pensamentos bons, como de forma alguma havia imaginado uma viagem ruim. Rogério havia me alertado: Uma hora a coisa pega! Minha vontade não era de fuga, mas de buscar a paz e alegria que temos em nós. Não teve jeito, não tinha para onde ir, se havíamos começado, era preciso ir até o fim.

Passamos por um casal na areia com um Pit Bull preto e ameaçador, também colérico. Kaki teve um susto e seguimos adiante concentrando para ignorar a hostilidade que havia em volta, integrado no local. O peixe continuava lá na nuvem, e quando olhávamos, não tinha como não escapar um grito espontâneo e assustado. Ríamos também, porque é bem próprio da nossa história e personalidade rir nos momentos mais esdrúxulos e sem saída. Sentamo-nos no meio da escada que chega até o calçadão. A escuridão e o vento denotavam um ambiente sombrio. Mal sentamos e o casal vinha subindo com o cachorro imenso. Resolvemos subir até a orla e de lá não voltamos mais para a areia.

Dois casais se enamoravam em lugares distintos, e nós completamente desorientadas, trocamos algumas palavras para tentar resolver a nossa questão. Mais uma vez quis ir embora, Kaki ponderou: Para onde iríamos se estávamos no auge do efeito? Ela tinha razão. A parada de ônibus era distante e ainda assim, não havia refúgio para nós. A única chance, então, era caminhar até encontrar qualquer cantinho receptivo, acolhedor e seguro. A caminhada foi longa e a esperança de encontrar tal lugar foi morrendo a cada passo. O corredor escuro, deserto, quando pior, passavam homens feios e asquerosos, como bêbados, fracassados e alguns mal intencionados falavam qualquer coisa para nós em tom de abordagem, passamos com os braços entrelaçados e passamos na fé absoluta de que sairíamos ilesa do terrível dia. Nesse momento pensei no salmo 23; “.Ainda que eu atravesse o vale escuro, nada temerei, pois Estais comigo”.

O calçadão nunca foi tão longo. Sentíamos medo e vontade de encontrar logo um espaço para descansar que não fosse hostil. O cogumelo havia nos mostrado o paraíso por vezes e agora nos apresentava o inferno. Do mar pouco se via, estava furioso e agitado com a ventania. O céu era denso e o clima tenso. O perigo era constante e a energia armada. As nuvens eram negras e o frio (que geralmente amo) não era nada acolhedor. Passamos por várias pessoas que caminhavam, outras apenas estavam lá como uma assombração. Vimos muita gente feia, estranha, e alguns deficientes físicos. Muitos homens, poucas mulheres. A cor predominante do inferno, além do preto cinza é o vermelho. E eu realmente não me identifiquei com aquele mundo que nos deprimia, mesmo quando tentávamos disfarçar.

O cartão postal da cidade, recentemente abandonado pela prefeitura, retoma agora as obras de reparo. O calçadão está praticamente sendo refeito. Homens trabalham de farda vermelha na areia com máquinas imensas (escavadeiras) na qual puxam pedras também enormes. O barulho era insuportável. Em alguns pontos o abismo de um lado, abandono do outro e no meio, onde pisávamos, sequer havia passagem e tínhamos que improvisar costurando por cima da terra. Era tanto material entulhado e arames e cercas que poluíam a visibilidade já angustiada pela ruína do lugar onde outrora, foi cenário de muitos romances e histórias marcantes, ao menos para mim. Realmente triste.

Encontramos três gatinhos pequenos e lindos, a única maravilha da noite. Um preto, um tigrado e um branquinho, todos do mesmo tamanho e bastante peludos. Estavam ali abandonados, miando e sem saída. Kaki segurou o branco, e pus os outros dois aninhados nos meus braços. No escuro trecho um milhão de vagalumes, mas amedrontadas pela obscuridade do resto, não demoramos na contemplação. Levamo-los até um espaço mais movimentado, onde há uns dois restaurantes e mais iluminação. Mas isso não significa que estivesse menos desagradável. Tocava uma música ruim, misturado ao som estrondoso das máquinas e pedras na praia. Homens feios circulando de vermelho nos olhavam como se quisessem nos engolir. Sentamos um pouco e beijei, agarrei bem como felícia, bastante os gatinhos fofos. Kaki acendeu um cigarro e mais uma vez tentamos resolver a situação: Procurar um banheiro e acima de tudo, um lugar de energia boa onde pudéssemos repousar a lombra.

Sem chegar à conclusão alguma, por falta de possibilidades também, resolvemos seguir caminhando em busca de abrigo e luz. Olhamos uma para outra, com o leve pesar de deixar aquelas coisinhas lindas e nos despedimos deles. Eles pularam dos nossos braços para o chão. Um homem feio e barrigudo se aproximou e nos disse que levássemos os gatos, pois “Eles vão colocar bola pra esses bichos morrerem, porque causam doenças nas pessoas”, não gostei do seu tom, muito menos da informação. Pedi por favor, que não fizessem nada com os inocentes, falei que não podíamos fazer nada, os gatinhos já estavam lá e apenas os trouxemos dali perto, de um ambiente mais escuro, eles queriam explorar o espaço e não quiseram vir conosco e ainda, que a praia é o habitat deles, já que eles provavelmente nasceram ali. O homem resmungou e nos culpou de ter jogado os felinos lá.

Os homens chegam sem permissão, se apossam do que é livre e natural, destroem tudo com seus entulhos, e com toda ignorância do mundo, se acham no direito de matar os animais, como se não bastasse ter destruído seus lares.

Enfim, saímos tristes e envergonhadas com a humanidade desumana. O que sentíamos era, provavelmente, o sentimento dos gatos: A feiura do espaço, o abandono, a hostilidade e a falta de liberdade para se locomover. Fomos em direção ao morro do careca, e passando pela orla de maior movimentação turística, vimos carros com expressões ruins, lixo, coisas mal feitas, coisas enferrujadas, mais pessoas feias e infelizes, ruídos e nosso desespero silencioso. Como já passamos por histórias! Comentava com Kaki, ao menos tínhamos uma à outra. Uma amizade complementar e necessária. Podíamos enfrentar tudo porque estávamos juntas, de mãos dadas pensávamos sempre positivo, com fé no coração e amor na alma. Por alguma razão desconhecida, tínhamos que atravessar o inferno de espectadoras, sem obviamente, fazer parte daquilo.

Foi difícil encontrar banheiro. Sequer calçadão havia mais, de forma que tivemos que atravessar para a rua dos restaurantes turísticos. As expressões das pessoas que jantavam, gostaria de esquecer. Falei para Kaki que tínhamos entrado no mundo dos fracassados. É preciso conhecer todas as realidades para escolher um caminho. Sabíamos internamente, o quanto não queríamos voltar ali. Depois de andar bastante entramos numa vendinha e fomos direto ao banheiro. Trancadas, nós rimos de tudo porque era melhor do que chorar. Fazer o que? No fundo era engraçadíssimo pelas situações que a gente já se meteu. Essa seria mais uma para a coleção. Quando saímos, a dona no estabelecimento reclamou porque não avisamos que íamos ao banheiro. Pedi desculpas, comprei uma água e um doce, e voltei ao calçadão onde Kaki me esperava numa mesinha branca de plástico.

Um hippie meio velho nos perguntava de onde éramos. Somos daqui mesmo, dissemos. Ele falou que era do RS e havia vindo para o RN. No mais, não dava para entender o que queria de nós, oferecemos brigadeiro, ele aceitou. Depois insistiu para que víssemos seu artesanato. Agradecemos rapidamente e saímos atordoadas com a estranheza de tudo. Não tinha mais para onde seguir, não queríamos voltar pelo corredor escuro. Retornei uma ligação perdida da minha irmã e ela chorava tanto que nem conseguia falar. O fim da picada, hora de partir mesmo! Subimos uma ladeira imensa e andamos mais um bocado até a parada de ônibus. Tentávamos relaxar para atrair coisas boas, mas o lugar não era propício. Na avenida na qual atravessamos, havia um gato atropelado. Não quis olhar. A demora do ônibus e o nosso silêncio pelo caminho.

Dessa vez não nos sentíamos privilegiadas. O cenário terrível que atravessamos lembrou-me um filme – Constantine, quando o personagem principal conhece o inferno. Atravessar o paraíso e o inferno não é viável para todos. Dante Alighieri também devia ter tomado cogumelos, comentamos com bom humor... Até as duas bananas que havíamos levado, se estragaram na bolsa de Kaki! Quando estávamos descendo do ônibus, achei um celular no banco ao lado, peguei e logo o coloquei de volta. Depois de tudo, não tinha a menor pretensão de possuir qualquer objeto de ninguém. Não queria carma e nem acúmulo de energias alheias. A carga material é tão forte e nem percebemos. Nos apegamos à coisas, e coisas não passam de coisas. Fica-se então na superficialidade das convenções e embalagens, deixando de ver além, a vida.

Não me arrependo de ter saído de casa neste dia. Até então as experiências com o ‘sagradinho’ haviam sido de luz e belezas. Conhecemos o outro lado da moeda, porque ele também existe. Apesar de tudo, fizemos uma oração em agradecimento por estarmos ilesas e protegidas. Ainda vimos um rosto na nuvem bem parecido com o rosto de areia, da experiência anterior na prainha, a qual me pai associou a um desenho cubista de Picasso. Kaki foi para sua casa visivelmente desmotivada. Depois soube que aquele mesmo dia tenebroso também não havia sido bom para algumas pessoas do meu convívio. Talvez estivéssemos mesmo interligados de alguma forma. O mundo é formado de energias e qualquer desequilíbrio influencia na composição harmônica geral.

Dormi bem e não tive pesadelos. Acordei leve e agradecida. Na manhã do dia seguinte, recebi uma mensagem linda de Kaki que só fortaleceu nossa amizade. Quando estive no paraíso tive que voltar para o mundo carnal dos homens, o que causou um desânimo e tédio nos dias seguintes e uma imensa vontade de partir, já que ali era a casa celestial dos mortos. Agora que estive no inferno, os dias seguintes se faz o oposto; Acordo e ao abrir a janela vejo o sol brilhando, o vento balançando a doce melodia das plantas. Pássaros em liberdade e harmonia me fazem suspirar de gratidão e glória. Estamos vivas e em paz. O amor não se desprendeu de nós, ao contrário, amadureceu sobrevivido a mais um estágio do caminho. Temos a íntima certeza de que somos puras de espírito, porque não desejamos mal nenhum. Toda a experiência é válida se o amor permanece iluminando até nos bueiros mais inóspitos da terra.

Shauara David
Enviado por Shauara David em 05/08/2013
Reeditado em 05/08/2013
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