Descamando Sara

Sara parou de olhar da janela de onde via o movimento tão parado de sempre eternas lembranças e foi preparar o jantar para o marido que chegaria com a noite. Da sala à cozinha sentiu a saudade dos filhos, desejo pulsante de ninho. Manteve-se intacta, mas por pouco não desfaleceu. Esticar o coração para alcançá-los no continente do outro lado é ficar por um fio e ela ainda não estava pronta para romper-se.

Esfregava as mãos constantemente como se estivesse esfarelando a agonia entre os dedos tão cheios de história. Abriu a geladeira com o corpo em brasa. Pegou a cebola compacta que jazia na porta como um cofre de sabores e colocou-a sobre o mármore da pia. O bulbo amarronzado em tons de degradê prometia folhas infinitas e teimosas lágrimas. Tirou a faca amoladíssima da gaveta. Ela também, em navalha. O brilho no metal inoxidável refletiu a réstia dos olhos do sol que ainda a espreitava atrás do horizonte. Ela comprimiu as pálpebras, ácida. Não suportava aquele gigantesco círculo que não podia ser apreendido com as pupilas e a fazia transpirar pântanos.  Embora de avental com borboletas rosa e um lenço de flores do campo, era gótica. Amava as escuridões, as penumbras, os crepúsculos, o lusco-fusco fosco que embrulhava a realidade com gaze cinza e a disfarçava;  ela de pele tão pálida ofuscada ainda mais com pós-compactos. Acumulava sobre si camadas e mais camadas temendo o que dentro dela parecia ser consistente e ameaçava manifestar-se. Possivelmente tinha receio da vacuidade caótica que fazia movimentos galácticos em seu peito. Uma mecha de cabelos ruivos desprendeu do tecido e caiu sobre o lado esquerdo do rosto.

Começou a descascar a cebola despregando finos pergaminhos folheados, filactérios alheios amarrados à força. O lenço cedeu, despencando-se da cabeça e libertando a vasta cabeleira louro-avermelhada, quase tapando-lhe toda a face. À medida que retirava mais estratos, a cebola ficava mais alva e húmida. Os olhos de Sara marejavam. O nariz em chafariz límpido e fluido. As mãos não ajeitavam nada, apenas se mantinham na tarefa de desfazer a estrutura do bulbo, debulhando-o até chegar ao nada. Seria a essência da cebola tão sutil que se dissipava na realidade assim que fosse descoberta? Era por isso que as pessoas choravam ao cometer o sacrilégio de descamar aquele bulbo que embrulhava o impalpável? Mesmo assim ainda esperava encontrar a natureza primordial daquela erva. As últimas cacas se amontoavam minúsculas sobre uma esfera quase pastosa.  Os nós do avental dela se desataram, caindo o vestuário em camadas de algodão repleto de temperos e odores. O movimento levou consigo a manga direita do vestido, desabotoando os primeiros botões da roupa, descobrindo todo o ombro e apresentando a auréola do seio ainda robusto. Na última tentativa delicada e precisa de desmembrar a diminuta coisa entre seus dedos, a cebola se desfez em nada absurdo e cheiro inebriante. O vestido dela não resistiu à gravidade e caiu na cerâmica fria. Dos cantos dos olhos, vertiam lágrimas copiosas. As narinas pingavam goteiras constantes. Por entre as coxas, um charco fazia-se cachoeira. Pelos poros, Sara minava. Era uma nascente nua, em pé, na cozinha.

Quando o homem chegou, achou estranho a poça d’água saindo sob a porta. Ao abri-la, foi arremessado por um tsunami de suores e fluidos e lágrimas que o deixaram assolado na rua do olho.

Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 25/07/2013
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