Depois da terceira vez...
Mais uma experiência com o cogumelo mágico- Carne dos deuses.
Compramos, eu e minha irmã, um kit de cultivo e seguindo minuciosamente as instruções do manual, no qual ficou claro que as exigências desses seres são meticulosas, além, claro, da imprescindível dedicação, muito cuidado e amor.
Esterilizar tudo que de alguma forma entrasse em contato com as mini estufas, pôr no forno por trinta minutos as bandejas, ver os dias de aguar (água filtrada), não expor diretamente ao sol, porém, escolher um lugar iluminado, temperatura adequadamente mediana e não mudá-los de lugar são apenas algumas precauções para que não contamine o solo e nem estresse-os e assim, evitando que estraguem.
Alojados no quarto da minha irmã, ocorreu mais ou menos como o prevenido: Conseguimos colher no primeiro ciclo 7 cogumelos em uma bandeja e 5 da outra. No segundo ciclo colhemos um número semelhante, que supostamente foram pouquíssimos. Retirado do solo, é preciso ressecá-los em uma meia atrás da geladeira (essa é a forma mais simples e caseira) para poder conservá-los melhor no congelador até o dia do consumo.
Como são seres extremamente seletivos, qualquer detalhe ou desarmonia, pode colocar tudo a perder. A alta temperatura da minha cidade, a inexperiência de ambas, a cobrança de algumas pessoas que esperavam ansiosas demais, a dificuldade de manter uma boa luminosidade solar no quarto, e as desavenças familiares, a qual eles presenciaram, e ainda, algum possível erro no processo de desidratação, talvez tenham sido alguns dos motivos do fracasso sensorial no consumo dos cogumelos das duas primeiras colheitas.
Meu pai, eu, minha irmã Tainah, os já conhecidos Gil e Juan, e uma grande amiga e pessoa linda Kaki, a única que iniciaria a experiência naquele dia. Nós tomamos, como anteriormente, seguindo os mesmos procedimentos: Contato com a natureza, oração, alimentação preliminar saudável, e principalmente, a humildade de quem reconhece as quão ínfimas partículas somos, em busca de alguma conexão e aprendizado. Ninguém, porém, sentiu nada. A leve frustração nos fez procurar os motivos deles, por não terem se apresentado a nós. Várias opiniões e no fim concluímos não adiantar em nada investigar, já que a personalidade deles está acima do entendimento humano, o que os torna ainda mais interessantes.
De toda forma, depois de todo o trabalho que eu e minha irmã tivemos somado à ausência de efeito, meio que desacreditamos um pouco no nosso potencial de efetuar um cultivo tão delicado, principalmente minha irmã que não os queria mais em seu quarto. Assim, eles se mudaram para o meu quarto, providenciei uma luminária de mesa, para que pudessem receber luz a noite e segui aguando, dia sim dia não, como mandava o manual.
Não tardou para que o terceiro ciclo começasse a aparecer para a felicidade minha e esperança geral. Passei quatro dias fora e deixei-os aos cuidados de Tainah, que deveria recolher os cogumelos adultos e proceder com a desidratação. Ela, porém, por algum motivo não o fez. Quando cheguei de viagem, fui correndo checar e eles estavam bem mais que maduros; totalmente escuros. Foram em média 15 cogumelos das duas bandejas, uns menores, outros maiores, mas todos pretos. Colhi cuidadosamente, pus atrás da geladeira dentro de meias durante 24 horas, em seguida congelei.
Após consultar fontes seguras e conhecedoras dos fungos, fui orientada a não consumi-los, já que eles haviam esporado e provavelmente estavam contaminados ou mortos.
Segui meus sentidos e permaneci com eles a espera de um dia propício e sem qualquer combinação, para que a naturalidade dos fatos nos guiasse até o encontro com eles, sentia eu, aconteceria.
Então, num sábado de Junho de 2013, fluía toda a chance de um encontro agradável no Bosque dos Namorados, um Parque Ecológico em Natal/RN, combinei, até então, sem a intenção de tomar, com Cinthia, uma amiga de alma pura, para nos rever. Coincidentemente Tainah havia marcado no mesmo espaço com um casal amigo- Wilza e Question- já conheciam os cogus - para se encontrar e passar a tarde juntos.
Foi então quando um estalo me fez agir. Pesquisei rapidamente na internet os riscos de consumir os cogumelos estragados, e não encontrando nenhum relato sobre casos letais, preparei-os prontamente com suco de cajá. Caso não surtisse efeito, tanto pela experiência anterior, quanto pela contaminação, fiz ainda um brigadeiro de cannabis, na possibilidade de forjar a realidade entediante do mundo físico, este dominado pela individualização do ser e consequente perda de sentido natural de interação com a natureza. Convidei Juan e fomos todos juntos, sem a ansiedade e preparos anteriores e felizes pelo encontro casualmente, tão raro, já que a rotina atarefada da maioria segrega e dificulta tais momentos.
Chegamos ao Parque das Dunas pouco depois das duas da tarde. A exuberância natureza do lugar e a leveza das conversas acolhia em nós, desde já, uma posição de privilégio e aventura. Fomos a um espaço mais reservado, perto de uma trilha, onde costumamos ficar, estendemos as cangas ao chão, acendemos alguns incensos, distribui os copos que havia levado, enchi todos com o suco cogumelado e após um brinde de alegria, humildade e homenagem, tomamos: Tudo era propício a esse encontro mágico.
Quase imediatamente, sentia-me diferente, meu corpo se preparava para receber aquele espírito. A estranheza inicial quase chega a ser um incômodo. Deitava no chão para concentrar e deixar livre o caminho da possessão.
Ali já não era apenas eu. E mesmo um pouco tonta, estava agradecida pela apresentação. Tainah, Juan, Wilza e seu companheiro decidiram sabiamente, fazer a caminhada pela trilha do parque. Eu e Cinthia permanecemos.
A realidade se transforma de uma maneira tão sutil que nos é impossível entender como. Nada é alucinação, por ser fato, tato e sentido. Amor. Era a primeira vez de Cinthia, que antes bastante temerosa, experimentava agora a sensação mais sublime e completa de paz. Caminhamos de braços dados nos arredores e conversamos baixinho, de tanto amor que as palavras adquiriam.
Observávamos a floresta, sentíamos suas infinitas energias e vidas. Ela via cogumelos gigantes entre as árvores. Eu dizia maternalmente, como quem compartilha uma verdade: “ta vendo como não tem como descrever? O cogumelo é isso... é natureza, é amor, é Deus.” ela concordava calmamente, semblante leve de criança, olhar desarmado de anciã.
Minha amiga estava plena, aconchegada no âmago por uma ancestralidade poderosa de energias. Andávamos lado a lado quando ela sentia-se em seu quintal, não apropriada no sentido físico de possuir algo, mas fazendo parte de tudo aquilo sem explicação, compartilhada de vida dentre o universo inteiro de pulsação e interligação. Passamos a chamar a imensidão de árvores antigas de “nosso quintal” tão em casa nos sentíamos. Completamente a vontade.
O céu estava meio nublado desde cedo, mas deu para perceber quando o sol se despedia deixando o lugar mais escuro e não menos belo. Fiz um cigarro e chamei Cinthia para recebermos o pessoal, que devia estar voltando, na entrada da trilha. O imensurável amor e gratidão que sentia, só me impulsionavam a encontrar os outros e abraçá-los, exposta dos sentimentos mais purificados.
Nesse momento Cinthia hesitou um pouco, já que todas as bolsas estavam ali, em cima da canga e entregue aos nossos cuidados. Insisti, coisas são só coisas, e nada podia nos atingir, estávamos protegidas, disso tinha convicção. Ela olhou um ponto qualquer, atrás de mim, sorriu e concordou em ir. No caminho ela contou que ali pertinho estavam dois lobos, guardando nossas coisas. Na entrada da trilha ela falava dos seres da floresta como se sentisse-os. Falava de bruxa, e de como se sentia uma. Os lobos do bem, a bruxa do bem, os moradores da floresta, o sentido íntimo da vida.
Logo avistamos Juan descendo a trilha, feliz, agradecido, entusiasmado e amoroso. Abraçamo-nos os três e ficamos em silêncio a escutar a orquestra incansável da mata, do vento, do tempo, dos seres todos. Em seguida vieram o casal e minha irmã Tainah. Compartilhamos o cigarro aos risos descontrolados, uma cumplicidade perfeita. Cinthia visivelmente a mais incorporada, falava brandamente e sem parar. Sentia tudo, era velha e sábia. Deslumbrada e ao mesmo tempo, íntima da coisa.
Eles contaram da trilha. Que pareciam estar num filme. Tudo era graça e harmonia. Um caminho lindo onde encontraram vários tipos de cogumelos, Juan, inclusive, pôde ver um deles respirando. Em uma bifurcação encontraram uma planta ramificada de galhos. Um galho central balançava com força e sem parar, como se tentasse uma comunicação, os outros galhos contrastavam permanecendo imóveis. Quando um deles aproximava a mão, o movimento do galho ia diminuindo, até parar. Bastava afastar-se e o galho voltava, insistentemente a balançar.
A conversa nos rendia risos. Juan reclamava as vozes nossas, quando já tinha o som das folhas, dos bichos, dos passos a sentir e perceber. A magia nos envolvia em total respeito e amizade. Éramos uma família na dádiva suprema do encontro.
Voltamos juntos ao “nosso jardim” e lá permanecemos até escurecer, alguém lembrou que de 6 horas fechava o parque, e de onde estávamos talvez não pudessem nos ver. Ótimo, ninguém queria sair dali. Eu e Cinthia demos mais uma volta pelo “nosso quintal” para nos despedirmos. Os demais conversavam alegres e abasbacados sobre os milagres que presenciaram na trilha, nós ao contrário, estávamos mais contemplativas, internamente serenas, reconhecendo a grandeza da experiência.
O casal teve medo de que ficássemos trancados pela noite toda e resolvemos ajeitarmo-nos, embora o corpo pedisse para ficar. Seguimos ao portão de saída quinze minutos depois do horário de fechar. O policial da guarda nos olhou enviesado. Algumas pessoas caminhavam e nós ríamos do vento. Estávamos apenas na metade do efeito. Compramos água de coco em abundância. Estávamos saciamos da sede, da doçura, com toda a graça.
Cinthia tomou seu rumo. Nós fomos de carro em busca de algo para comer. Acredito que essa fome tenha sido psicológica, já que a presença do cogumelo de Deus é completo, e estamos tão atrelados às necessidade mundanas que simplesmente deixamos de nos sentir, tal qual como somos. Escolhemos um supermercado pela variedade de opções e localização. Ondas de paz vibravam dentro de mim, era como se estivesse dentro de uma bolha de luz e proteção. Durante o caminho fomos conversando sobre a magia do dia, explosões coletivas de risos e tudo seguia perfeito.
Chegando no supermercado, encontrei dois amigos. Luciano, iluminado ser e Rodrigo, alma boa e olhos azuis. E foi olhando dentro de seus olhos, que vi claramente a bandeira do Brasil. Mostrei aos outros, encabulando sem querer o garoto. Era impressionante, todas as cores da bandeira, inclusive os pontinhos brancos. Eles foram embora e nós adentramos no estabelecimento em busca de comida.
Eu ia com Tainah, o casal atrás de nós e Juan perdemos de vista. Simplesmente o local estava dominado por ETS. Pessoas esdrúxulas sobressaltavam suas feiuras. De todos os lugares surgiam figuras estranhíssimas, nos encurralando e impedindo que andássemos normalmente. Era divertido, porém irreal. Uma senhora meio anã com uma roupa hiper diferente, duas mulheres que pareciam casquinhas de sorvete andando. Quatro homens terrivelmente mostrificados. Aonde olhássemos, por onde andássemos, esbarrávamos com os esquisitos seres. Havia uma senhora estática, muito branca, com olhos de sangue me olhando enraivecida, mostrei amedrontada à minha irmã. Foi a gota d´gua. Tainah estarrecida gritava repetidamente “ eu não to entendendo nada!”. Não teve jeito de entender, sob efeito do cogumelo estávamos sensíveis para ver além do corpo, víamos as áureas. O cogumelo nos expulsou daquele ambiente hostil. Saímos como que fugidos enquanto o segurança do local rodeava em vigília a nós, completamente estranhos a eles.
Estávamos “acordados” enquanto os outros “ dormiam”. É o estado de lucidez que nos permite o cogumelo. As portas da percepção abrem por infinitas vias. O contato com ambientes carregados pode acarretar numa “bad trip”, porque a alma e a verdade de cada coisa ou pessoa ficam visíveis e acessíveis demais a nós, quando possuídos por estes seres enigmáticos.
Saímos do local meio contaminados pelo acontecido. Foi engraçado, mas não o suficiente para manter o mesmo amor e harmonia que sentíamos na mata. Procuramos outro lanche, mas a magia singular que envolvia os cinco tornou-se densa quando Question, que dirigia o carro, se irritou com a indecisão de próximo local. A chateação dele, claro, foi sentida por nós. Ficamos em silêncio. “Qualquer lugar” a pressa e tensão nos fez optar. Chegamos num carrinho de cachorro quente e eu não quis comer. Os demais comeram, eu não via sentido naquilo.
Terminado o lanche, fomos na casa do amigo Olavo, que lá estava com Gil, sua namorada e minha amiga. Contamos felizes a experiência daquele dia e as ondas de paz ainda se faziam sentir em mim. Estava plena, agradecidamente suave. Apesar dos ínfimos contratempos que passamos, sei que tudo, absolutamente, faz parte do aprendizado.