154 – O RENASCER...
Que venha a dor, mas não a dor física, que venha uma dor muito mais profunda e dilacerante, a dor que martiriza a alma por inteiro, que produza em mim um estado de torpor, e que este torpor tal qual uma mão santa tocando na minha cegueira produza o milagre da visão, das trevas para a claridade, e então nitidamente eu passe a ver e sentir as coisas como elas realmente são, na sua realidade nua e crua, momentaneamente eu me livro da carapaça que uso no meu dia a dia, das máscaras que me sirvo para relacionar com outras pessoas, que na certa são iguais a mim, artificiais.
Assim minha alma por uns instantes se liberta da cegueira que me cerca no dia a dia, reencontro-me, a realidade volta a espelhar a realidade, pasmado, me olhando de lado, sinto que não sou nada mais que um amontoado de nada, mesmo assim, por estes ralos momentos de lucidez renasce em mim a poesia, a lírica, e uma vontade de abraçar pessoas demonstrando a minha felicidade, enfim, me embrulho em vestes humanas.
A vida na sua ventura me transformou, me transmudou, artificialidades foram incorporando tanto no meu corpo, quanto na minha alma, A carapaça que trago grudada no rosto são mascaras e mais mascaras, tudo na conformidade do momento, e um ser completamente diferente daquilo que realmente sou, assomou, mais inteligente e astuto, frio e calculista, não medindo esforços para atingir seus objetivos, e não se importando de usar estratégias pérfidas, golpes sujos, mesquinhos e rasteiros e traiçoeiros, os meios não importam, se os fins forem atingidos, e se para tanto sobre cadáveres eu tiver que caminhar, caminharei, me recriei, e este ser à parte se transformou naquilo que realmente eu sou, uma máquina, insensível ao sofrimento alheio, compenetrado nos resultados, e somente isto é o que me importa, a minha vida se transformou em um imenso campo de batalha.
Das vezes me desespero, me sinto perdido, sem rumo, então eu me enrolo, me contorço, me recolho pra dentro de mim, tal qual uma grande cobra sufocando e sendo sufocado ao um só tempo, sou o algoz e a vítima de mim mesmo, a minha realidade é uma mordaça asfixiadora, estou sendo afogado por circunstâncias engendradas por mim, pelo meu jeito de ser, pelo meu jeito de agir, e por estas carapaças a que me obrigo a usar, me sinto tão estranho que das vezes tenho medo de mim.
Somente quando uma dor profunda, dilacerante, atinge em cheio o meu ser, a alma minha todas se curva, se torna pequenina, renasço, criancinha a brincar de correr, volto para os braços da minha mãe, reencontro os amigos e companheiros com a alegria estampada no rosto, por estes breves momentos a alma é livre, voa e plana acima de mim, bem acima de mim, pra bem longe das loucuras e das maledicências do meu combater viver, momentaneamente me reencontro, momentaneamente eu sou feliz...