HERANÇA

Ei-lo!

disse o rei

com seu rebento sobre a cabeça

E a multidão, sequiciosa

e curvada para a prece,

calada ficava

Este é o destino que lhes ofereço,

disse o rei

Nele terão minha herança

e o poder que meu pai

a mim destinou

E que a vós, assim como, a seus ancestrais,

a seus antepassados,

também meu pai eu lhes ofereceu

Hoje, como sacrifício

e destituído da vil pequenez

e egoísta dos falsos líderes

Eu, livre dessa ignominiosa e tacanha índole,

eu lhes ofereço meu filho

Esse meu rebento,

que traz nas veias o sangue mais puro

e virtuoso dos que amam seu povo,

lhes garanto,

esse meu rebento, que de mim herda

as mais virtuosas das intenções,

lhes guiará à sólida nação que plantamos

E a multidão, calada e olhos ao chão,

nada diz

Esfarrapados e famintos,

mães e filhos, tão parecidos na magresa,

já não se distinguiam

Também calados, posto que respirar

já lhes impunha demasiado esforço,

ficavam os velhos

Olhos mortos, peles manchadas e barrigas vazias,

todos, naquela multidão,

eram, em tudo iguais

E o rei, cercado de guardas

e vestuário escarlate,

sobre a cabeça uma coroa de ouro e diamantes,

o rei, à voz imponente e sorriso traidor,

o rei, com seu rebento sobre a cabeça,

oferecia seu sacrifício à multidão calada

Tudo seguia o rito

secularmente seguido

Nunca nem se tentou

quebrar o silêncio da cerimônia,

Mas naquele dia,

vindo não se sabe de onde,

ainda quando todos em cerimonial silêncio,

um grito se rompe na multidão

A surpresa causada por aquele estrondoso grito,

tão único e inovador,

calou o rei e seus guardas

A multidão, abismada,

rompendo a silenciosa tradição por séculos renovada,

e não podendo mais evitar,

toda ela, em sincronia instintiva,

volta seus olhos ao que rompeu o silêncio

E o rei, tomado de pavor e

olhos arregalados, nada diz:

adentra ao castelo e desaparece na penumbra dos salões

Guardas perfilam,

e de armas em punho miram, disparam

Corpos forram a terra e um rio de sangue nasce

Confiante na vitória certa,

o rei, majestoso e sob vestes escarlate, sorri

Porém,

eis que no centro daquele rio de cadáveres insepultos,

uma voz se ouve

E num brado rugido de leão,

tão alto que fez a terra tremer

e alguns corpos voltarem à vida,

o rei abismado, nada diz

Porque sabe:

pode matar corpos,

mas nunca matará ideias