PROCESSO

Sem paz, abro a gaveta e tiro pele e navalha. Acendo com o último palito que resta as folhas antigas. Uma pitada, duas pitadas, enfim, um trago nas lembranças tóxicas e a inevitável tosse, com os respingos de saliva e suor e sangue, e toda aquela podridão contida em mim inundam a escrivaninha, caem sobre a pele e a navalha na trêmula mão.

E a navalha é quem se impõe e me impinge a tatuar com cortes profundos a epiderme encardida e fria. Ameaça-me: Ou eu singro o couro ou me sangra a mão. E tanto faz se o que escorre é sangue ou groselha, se é sombra ou luz, verdade ou mentira. O que vale é que uma catadupa de sentidos leva a mim e a quem ousa entrar comigo no bote, e a viagem é longa e por vezes perigosa.

Mas a navalha segue indigna, destroçando as linhas, estripando ventres em busca de algo: o intestino cheio de palavras, o coração semântico, o pulmão sintático e perfurado e um fígado sintético, conservado em formol. A navalha segue já sem minha mão, mas não para, e sangra a pele, escreve por conta própria e, por fim, me acusa de seus crimes. E eu, demente, confesso-os todos e a todos assino. A navalha é uma pena sem pena. Eu, sem dó, navalho-me então, e jogo o sangue em você.