Cem dias antes

“Partir!

Nunca voltarei,

Nunca voltarei porque nunca se volta.

O lugar a que se volta é sempre outro”

(Álvaro de Campos)

Conte-me mais, conte-me tudo...

Conte-me por que e com quem sonhas

Conte-me quantos podem ouvi-la

Conte e enumere todos os cânticos do porvir

Não, não os enumere; em verdade, nunca saberemos o número exato de almas que ouviram esses cânticos

Quantas são, quantas ainda querem ouvir e ver as trombetas ressoarem

Enquanto isso, espero as noites para poder sonhar

Minhas noites só servem para esse propósito!

Devo voltar ao sonho que tive? Tê-lo-ei novamente nessa noite?

Da mesma forma, com o mesmo enredo, o mesmo momento de acordar?

Do sonho, as mesmas personagens me rodeando, me tateando, me respirando...

Pensando nisso, acordado, entrei naquela sala...

... Aproximei-me do caixão e, pude observar que...

... Ah, não!

Lá está quem sonhava junto a mim

Quem me proporcionou calor por todas as noites passadas

Lá, inerte... Fria e nunca mais sonhará comigo

Não se erguerá e não me olhará e nem me abraçará

Nunca mais, pois na alma não há matéria, nem calor, resta-me o amor...

... Que tive, que recebi; jamais poderei senti-lo novamente, nunca mais a tocarei

Sofro!

De que adianta tanto sofrimento?

Só me resta tamanho tormento?

Deus, inclina-me os seus ouvidos!

Nessa triste realidade, só os muros do cais dessa cidade sem navios têm quartos que transbordam amor

Amor que vem e vai como cargueiros... Atracam e partem todos os dias!

Enquanto as paredes permanecem sólidas, intactas e reais, essas paredes brancas sem rachaduras

Refinadas, aliás, muito mais reais do que o cheiro das flores murchas que senti outrora

Por hora, respiro e penso... Será que eu é que sou o sonho de quem sentiu o meu calor e que agora jaz diante de mim?

E, aquele cheiro de flores era-me um aviso que eu não quis interpretar?

Depois das orações e da cerimônia, percebi outra realidade

E ela me levou, sem despedida... Cem dias antes para outra cidade

Estava escrito que iria e fechei os olhos para a partida

Resignado, não me despedi das almas; só havia tempo de me despedir da minha própria felicidade.

*A Álvaro de Campos.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 27/04/2013
Código do texto: T4262127
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.