ESPELHO TRINCADO

Minha mãe seguia nossos passos com o olhar e recomendava-nos cuidado.

Havia visita para o almoço e a pontualidade em servi-lo exigia o sacrifício da sua presença.

Não iria conosco como de costume.

A pescaria fazia parte da nossa rotina. Era como ir à missa todas as manhãs; nosso ritual sagrado!

O fubá cozido, a farinha de trigo para a liga, nossa isca principal. As minhocas, o milho verde, também faziam parte do cardápio a ser oferecido aos peixes.

Era minha mãe quem preparava tudo. Adorava peixe! Tinha um cordão de ouro com um peixe dependurado...peixe dos olhos vermelhos, olhos de rubi. Mas ela gostava mesmo era dos peixes com os olhos sem brilho que tirava da frigideira, tostados pelo óleo quente!

Parada nos seguia com o olhar...

Minha irmã, meu cunhado, um amigo dele, eu e meu tio.

Meu tio o portador das varas, das iscas, de todos apetrechos necessários à pesca.Ria tanto quando os mais apressados se adiantavam...

Mantinha o seu andar sem pressa,seu olhar buscando o nada, sempre o nada; o nada da vida, o nada de ser.

Sorria e balançava a cabeça num gesto ímpar para mim... Ajeitava o pequeno chapéu como quem ajeita os pensamentos, acomoda as idéias, sabe-se Deus quais... e, lá íamos nós!

A distância a ser percorrida tornava-se pequena diante da extensão da vontade.

Era um subir e descer de morros, de expectativas sem cansaços.

Às vezes uma paradinha para um cigarro que segundo ele espantava os mosquitos. Outra paradinha ali, mais uma acolá para colher os frutos do caminho...as marias pretinhas, as sementes de grilo,as perinhas rasteiras, as marmelinhas, as gabirobas, os araçás...tudo com o gosto e o aroma da infância!

Quando avistávamos os pinheiros, que alegria, era chegada a última descida. A porta da mata se abria tendo a represa acorrentada aos seus pés.

A chuva da madrugada havia jogado água para fora. Se não conhecêssemos tão bem o local, impossível seria precisar-lhe os limites.

Mas ali era bem o quintal da nossa casa ou até mesmo a nossa própria cozinha.

Chegamos; nos acomodamos e o silêncio se fez respeitoso. Às vezes ele se quebrava com o ruído da queda das quirelas de milho que eram atiradas à água por mãos de um ou de outro, no intuito da ceva; e os anzóis traiçoeiros traziam para a superfície os peixes mais esganados ou então àqueles desavisados.

Muitas vezes passávamos pelo teste da paciência, anzol iscado e nada! Ainda assim valia a espera.

Manhã quente... calor, sede.

Fui até a nascente buscar água. Água que naquele dia não precisou ir tão longe para se misturar às da represa.

Caminhada longa... trilhos alagados. Quando os limites me eram imprecisos, agarrava-me aos galhos das árvores,subia em troncos caídos, fazia zigue e zagues, contornava os alagados maiores.

Ao chegar à nascente, cenário lindo! A água que descia da montanha triplicara de volume; formava uma cascata e a água que escorria formava um largo córrego que dividia os dois lados.

Eu enchia o garrafão de água e sonhos quando a figura de um homem surgiu do outro lado do córrego. Era o amigo de meu cunhado! Parecia ter vindo na contra mão da represa!

Fitou-me sem palavras. Parecia buscá-las num dicionário infantil sem encontrá-las.

Um medo sem nome surgiu-me de repente. Como árvore também me plantei. Senti enraizar-me por momentos. Olhos fixos, saltados, coração a galope.

Fitava-me paciente como um professor ao querer ensinar aos alunos as primeiras letras.

Foi despindo-se, mas com os olhos colados em mim. Despiu-se até mesmo de sua peça mais íntima.

Na nudez do seu corpo eu enxerguei a nudez da sua alma!

As meninas dos meus olhos deixaram de dançar ciranda...

Ele acariciava-se; movimentos leves e firmes.

Meus olhos o fitavam em toda a sua insanidade.Minha cabeça ocupou-se do nada.

Minutos de eternidade ou eternidade de minutos meio a um paraíso infernal foram vividos. Não se colhe um fruto verde, não se arranca o botão de uma flor...

Repentinamente um salto sobre o córrego e ...como uma flecha eu voei na mata! Não houve empecilho para o meu voo. Não houve água, galhos, distância... Ultrapassei as barreiras do medo, do som. Anulei o tempo sem saber como. Meu grito de horror e desespero ainda hoje ecoa em meus sonhos.

Não houve ferimentos ou qualquer lembrança da travessia nas águas... somente o meu espelho trincou.

Quantas pescarias a vida ainda me trouxe. Quantos peixes infância fora fisguei. Mas a minha imagem trincada no espelho , dos meus onze anos para frente, enxerguei!

Tina Oliver
Enviado por Tina Oliver em 16/04/2013
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