O PESADELO DE MEU PAI

A culpa foi minha!

Viva eu cem anos e continuarei amarrado às cordas do tempo, que me puxarão para aquele dia; confidenciava-me meu pai.

Era um tempo de pobreza, a falta de recursos era enorme e a distância emprestava às pernas o cansaço da chegada.

Minha pequena filha era rica em alegria, graça e sabedoria. Trazia nos olhos, o reino dos céus!

Fascinava a todos, tamanha beleza! Até mesmo as flores se curvavam diante dela e se ofereciam para serem colhidas.

Havia algo a mais na minha criança. Às vezes me pergunto se foi um anjo descuidoso que caiu das nuvens ou se uma estrela que precisava voltar rápido ao céu para “alumiar” as outras.

Iluminou os meus dias... clareou minhas noites! A rapidez da estada foi a mesma da partida.

Os poucos anos do corpo contradiziam a idade do espírito.

Era primavera...

As flores do quintal da casa pareciam desabrochar somente para vê-la. Era um festival de cores, um vai e vem de borboletas e beija-flores. Um verdadeiro baile cheio de maestria e leveza de movimentos que não carecia de melodia para tocar meu coração.

Ela, a bailarina principal!

Devia ter lhe dado o nome de uma flor...

Naquele dia somente um beija-flor apareceu; não para fazer a sua corte às flores, mas para cortejar o meu anjo. Bailou tanto ao seu redor, que acho mesmo, confidenciou-lhe um segredo. Beija- flor do rabo branco! Dançou tanta ciranda, tantas voltas deu, que eu nunca mais me esqueci dele. Acredito que ele pré- anunciava a morte; que havia agouro em meio à tamanha beleza!

Sinto arrepios quando vejo um!

Tivesse eu o dom do artista, retrataria na tela aquele momento único. Minha criança com o colo cheio de flor; flores frescas, na sua primeira infância, assim como ela, desabrochando para a vida. Flores escondidas no vestidinho puxado até a cintura e seguro de cada lado pelas mãozinhas que guardavam inocência.

E o beija flor no seu baile incansável! Cenário de medo e beleza.

Medo por não poder ler nas entrelinhas do tempo... por não entender os gestos rápidos do beija-flor. Será que ele tentava dizer que ela teria o mesmo destino das flores?

Impossível precisar...impossível ler nos lábios da natureza!

Um dia tão colorido para uma noite tão escura!

A doença não pediu licença para chegar e se instalar naquele pequeno corpo. Quis possuí-lo... tomá-lo.

A distância da cidade, o desespero, a falta de recursos, a agonia... O médico tão esperado na noite interminável! Os ponteiros do relógio resolveram diminuir sua marcha, quem sabe para ganhar tempo. O próprio tempo parecia esperar.

Na lentidão da noite,o pequeno corpo a arder na agonia da espera...

E o beija- flor voava... Voou a noite toda no desespero das minhas orações.

Já era dia claro quando o médico chegou. Pouca coisa há a fazer... Crupe, diagnosticou ele. Três injeções e muita oração. A primeira foi aplicada com o nome esperança.

Pressenti a despedida. Meu anjo não tardaria voltar a enfeitar os jardins do céu. Será que lá existe beija-flor do rabo branco?

No meu jardim nenhuma flor se abriu naquele dia... elas se fizeram colher na véspera.

Outra noite chegou e com ela o perfume inconfundível de sua dama, plantada ao lado da janela. A cantoria dos grilos , numa canção bonita e triste. O canto agourento de uma coruja no telhado. Três vezes ela cantou, três vezes o meu coração se inquietou.

Minha filha abriu os olhos... seu olhar parecia englobar o mundo. Será que ela via o beija- flor?

Comecei a injetar-lhe na veia a segunda dose do líquido da esperança...esperança de um milagre, milagre que não veio. Olhei dentro dos olhos do meu anjo e tentei penetrar-lhe a alma. Deixei-me fotografar pelos seus olhos. Vi deles a luz ser roubada...era a sua passagem, o retorno inevitável.

Com a mesma velocidade que injetei o líquido em sua veia, seus olhos se fecharam...

Vida tão curta para o meu pesadelo eterno!

Tina Oliver
Enviado por Tina Oliver em 12/04/2013
Reeditado em 02/04/2019
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