DESENCONTROS
Costumava sentar-se em um pedregulho enorme, mais alto que o muro do jardim, e dali, solitáriamente, observar o final do dia, vendo o sol rodar por entre as árvores até sumir completamente, lá longe, por detrás do mar.
De lá, olhando para baixo, podia ver o velho jardim abandonado. Nesse dia, sentiu-o diferente.
Até o regato que o cruzava, já não era a mesma velha presença de sempre, triste e murmurante, lúgubre contador de velhas histórias, contadas e recontadas durante dias e noites sem fim.
Imediatamente notou a presença de uma mulher e, do lado de fora do muro, um homem. Não querendo ser visto, ficou muito quieto, condenando-se a presenciar algo a que não queria assistir, tornando-se um espectador involuntário de um quotidiano que não era o seu.
Aos poucos, a luz dourada do final da tarde e o insólito da situação criaram um momento especial, um momento mágico, que o levou a identificar-se com esses dois estranhos que observava.
Ela, extasiada, parecia sentir pela primeira vez a presença amiga do regato bordado a prata, e aqueles doces gritos de vida que eram as flores, a dádiva que o mundo do belo lhe oferecia em cada folha amarela e solta, rodopiando no ar até cair a seus pés.
E os sons, todo esse mundo inebriante dos sons, parecia apontar para coisas ignoradas, trazendo até ela cantigas de amigo no murmúrio das águas, carícias no suave hálito do vento.
Tudo, de uma forma absoluta e irredutível, parecia conduzi-la para dentro de si própria, para formas insuspeitadas de volúpia e ternura, para sensações e necessidades que não sabia entender.
Sentada junto à água espelhada, receando ter-se atrasado mas esperando, assistia fremente e angustiada à passagem do tempo, vendo as flores que o regato transportava de vez em quando, trazidas já do outro lado do muro ao fundo do jardim, sob o qual as águas pareciam nascer...
E do outro lado desse muro, o homem. Mago sem cartola nem diploma, em pé, absorto, segurando um cigarro apagado entre os dedos, olhava o relógio distraidamente, certo de ter chegado demasiado cedo.
Tenso, encostado a uma árvore tombada junto do regato, e como que marcando os minutos, lentamente estendia um braço para trás de si e, colhendo uma flor, atirava-a para a água e seguia-a com os olhos, observando o seu deslizar lento – demasiado lento – até ela desaparecer por baixo do muro que ele, pouco depois, cheio de incertezas, saltaria.
( da série " enquadramentos ", Oeiras 1983 )