(Epílogo)


I

Eu vim por causa da poesia.
Não quero nem um prato de comida
nem uma caneca de qualquer bebida,
que nada sei dessa sede e dessa fome,
dessa necessidade tão comum do corpo
que só o corpo sendo corpo é que tem.
Queria algo para o que em mim sente,
esta não parte que reluto chamar de alma,
que não mente e pressente o que dói em mim,
esse desespero vivo que luto por não dizer.

Eu vim por tudo o que não consigo ver...


II

Trago para este silêncio ainda mais silêncio,
trago justamente o meu silêncio,
este que eu fiz, que eu quis, que não diz.
Trago as mãos cansadas de cavar a terra,
os pés ainda esquecidos de seu caminhar,
trago esses olhos mortos de tanto chorar
por todas aquelas visões que eu não tive
e por todos os sonhos em que não estive.
Trago a garganta seca de não mais gritar
e o peito vazio esperando alguém voltar,
o pensamento arredio que não ousa mais sonhar,
trago essa vontade vadia que desaprendeu desejar.

Porque eu vim por tudo aquilo que não posso ser...


III

Eu vim por causa dessa coisa sem nome,
dessa coisa que rasteja ainda sem nome,
vida ou o que quer que seja essa indiferença,
essa diferença que não faz a dor alheia,
que se parece cada vez mais tão menos tua
quanto se parece cada vez mais tão só minha.
E tão minha que só em mim dói assim sozinha,
mas que me ensina a fingir e me obriga a mentir
sempre dizer que não vem a ser dor nenhuma.

Eu vim por tudo aquilo que não posso mais sentir...


IV

E trago em mim todos os silêncios,
os de agora e os de outrora,
os de dentro e os de fora,
dos ares, de todos os mares,
das distâncias, de todos os lugares,
de cidades e verdades inexistentes,
de uma paz que só tem nos sonhos impossíveis,
este silêncio de minhas palavras mais indizíveis.
Trago a centelha diabólica de uma inspiração divina,
do amor efêmero que arde em chamas eternas,
enquanto me chamas de uma distância infinita,
do deserto de minhas emoções mais sinceras,
enquanto morto eu espero por uma palavra não dita
e morto rastejo em vão pelo vão de todas as esperas.

E eu só vim por tudo aquilo que não posso mais ter...


V

Eu vim porque não sei ficar onde não estou,
nem posso estar onde sei que não vou caber.
E para saber estar tenho ainda de ser.
E tudo isto cansa, angustia e me esgota,
tudo isto me dá asco, a vida este fiasco,
esse fracasso que tanto valorizamos,
este fiapo do universo que assim pensamos
infinito e eterno e tudo o que não precisamos.
Não sabemos nem o quanto somos tão pequenos
e de tudo o que imaginamos somos ainda bem menos.

Eu só vim porque não sei ficar, sei somente partir...


VI

Trago a ideia absurda de palavras possíveis.
A ideia impossível de uma absurda poesia,
que tenha concebido algo deste imenso silêncio.
De uma absurda e inimaginável poesia,
feita de janelas tantas e ventos a entrar por elas,
feita de portas e nossos passos que vem e vão,
feita de céus estrelados, de sol e de chuva,
de jardins floridos e horizontes iluminados,
de cores maravilhadas e de amores obstinados
e de meus desejos mais desafortunados.
Mas é só a tola vontade que tem vontade de ser,
essa vontade que nos faz sempre pensar que somos
o que pomos no mundo ou isto que ora pensamos,
ou quem sabe o que sonhamos, que é coisa nenhuma.
E o mais é nada, só uma ideia abstrata de estrada,
uma impressão insensata de existir a existência,
na qual sonhamos que pensamos desejar existir
e assim é que tudo é só distância, só silêncio.
O mais é nada, uma ideia desde o início errada,
desse lirismo estrada sem rumo que temos que seguir.


E eu só vim aqui porque ainda nem nasci...
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 31/03/2013
Reeditado em 25/04/2021
Código do texto: T4217322
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.