Correspondências
Comprei AS Flores do Mal em oitenta e sete. Era uma tradução de Jamil Almansur Haddad. Li e reli a obra do poeta francês, mas Baudelaire continuou distante do que eu pudesse sentir ou compreender. Os tradutores são, de certa forma, traidores. É muito difícil ser fiel ao texto, principalmente no caso da poesia. Mesmo assim, houve ali dois poemas que me chamaram a atenção: Correspondências e O Albatroz.
Muitos anos depois, ao ler a biografia do poeta, seguindo o conselho de Beto Portinari, compreendi melhor aqueles dois poemas e toda a obra do angustiado escritor. O amigo dissera-me que a leitura da vida do artista poderia me ajudar a compreender a sua obra.
Como em meu tempo de menino o francês era matéria obrigatória na escola, arrisquei a minha própria traição:
“A Natureza é um templo onde os pilares viventes
Deixam, às vezes, escapar palavras confusas.”
Estes primeiros versos transportaram-me à infância e fizeram-me experimentar novamente o sentimento panteísta, pois vozes misteriosas respondem-se na Natureza anunciando uma correspondência entre o que é visível e invisível, entre matéria e espírito, pois ela é um vasto templo, único e verdadeiro, cujos pilares deixam à mostra hieróglifos misteriosos e familiares que o passante distraído não os percebe, mas que os decifradores podem captar.
“O homem atravessa-a através de uma floresta de símbolos que observam-no com olhares familiares.”
O mundo visível como uma outra face do invisível. E por que não mais real? O véu que cobre a Natureza desvela uma realidade maior, embora invisível aos olhos físicos.
“Como ecos prolongados que na distância se confundem numa tenebrosa e profunda unidade, vasta como a noite e a claridade, perfumes, cores e sons se respondem”.
“Há perfumes frescos como a carne das crianças, doces como o som do oboé, verdes como as pradarias, e outros corrompidos, ricos e triunfantes, tendo a expansão de coisas infinitas, como o âmbar, o almíscar e o incenso que cantam os transportes do espírito e dos sentido.”
Toda esta simbologia de Baudelaire, onde o físico e o metafísico confundem-se numa inspiração que nem o próprio poeta sabe de onde vem, reporta-nos aos símbolos e às metáforas de Borges e Fernando Pessoa:
“Símbolos? Estou farto de símbolos”,
diz-nos o amargurado engenheiro Álvaro de Campos.
“Mas dizem que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.”
E alguns dias antes, o engenheiro-poeta resume versejando, lá pelos idos de 33:
“Símbolos. Tudo símbolos.
Se calhar tudo é símbolos.
Será tu um símbolo também? “
Neste Universo de símbolos, tudo são metáforas. Alguém já expressou que toda a palavra é uma metáfora morta. Seria o ser humano uma metáfora viva, expressão ou símbolo de uma realidade maior?
A palavra metáfora provém do grego e fundamenta-se numa relação de semelhança entre o sentido próprio de uma palavra e o figurado.
No clássico exemplo de se chamar de raposa uma pessoa astuta ou a juventude como a primavera da vida, o esperto animal empresta vivacidade aos humanos e a Natureza a sua beleza à juventude.
Há eloqüentes metáforas cheias de otimismo e de vida e as negras e entristecidas. A luz do conhecimento que poderia iluminar os escuros âmbitos do entendimento sugere vida, aprendizado e uma outra metáfora: o caminho do aperfeiçoamento que poderia ser percorrido pela inteligência de quem decidisse abandonar as velhas metáforas da passividade, do conformismo e do pessimismo.
A vida, como um vale de sofrimentos e de lágrimas, metáfora menor e entristecida que nos reporta ao aforismo pessimista que diz que ela é amarga ou que errar é humano, faz-nos refletir que a vida deve ser doce e que acertar é humano.
Se as nossas vidas são metáforas, expressões e símbolos de uma realidade maior, façamos com que elas se preencham com o conteúdo da natureza cheia de luz, movimento e transformação, e se correspondam com a Natureza.
Nagib Anderáos Neto
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