E me mudou sem me pedir

não. eu não tenho tido muito tempo para costurar. e fico morrendo de medo que você enlouqueça outra vez com meus retalhos guardados.

tenho escondido-os. mas você tá perigosamente presente.

então a minha solução recente é não alinhavar. as agulhas tão um pouco enferrujadas... não sei, acho que já não enxergo tão bem, já não tenho tanta facilidade em perpassar a ponta da linha pela brecha no metal. perdi a prática, perdi a coragem até.

não tenho criado muito, porque morro de medo de você me compreender demais. e invadir minha cabeça.

por isso estou assim, debaixo da mesa, com um pedaço pequeno de pano e sem um projeto a criar. mas é que furar os retalhos com a agulha é uma coisa que sempre me fez aliviar a pressão do espírito.

as pessoas tem suas manias tão pessoais. seus milhares e bilhares e trilhões de manias. e, é claro, Freud explica as bizarras, mas o verdadeiro ponto fraco da psicanálise é aquela fobia discreta, é aquele delírio calado, é aquela obsessão imperceptível que ninguém nunca viu como algo a se pesquisar. e que todo mundo tem todo dia.

lá vou eu, de novo, com a minha mania estúpida de complicar.

velhas portas mentais devem permanecer cerradas. elas devem ter sido trancadas por alguma razão, não?

mas lá vou eu, pontos em cruz, bordados em nó. cada retaliação artesanal é uma dose de vodka. ninguém melhor que a gente conhece as nossas cachaças. e a gente tantas vezes conhece sem nem saber. só faz, só sente necessidade de fazer.

mas não é bem isso que eu ia falar.

ia dizer que te temo. te temo porque te amo e te gostar tem mudado demais a pessoa que eu sou. eu não sou do tipo que veleja, eu era do tipo que costura. e eu não sou do tipo que muda, eu sou do tipo que só é mesmo.

e não costurar é estranho agora. fazer o tipo de coisa que gente feliz e bem resolvida faz é estranho. porque eu passei a maior parte da minha vida não sendo feliz e bem resolvida. e eu costurava. e costurar é o que eu sei fazer.

eu não sou do tipo de pessoa que veleja.

mas por que é que você se importaria com isso? e como é que você entenderia tanta metáfora alinhavada?

Gabriela Sanmar
Enviado por Gabriela Sanmar em 17/03/2013
Código do texto: T4193796
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