A Aurora de Clarisse
Alguém bate na minha porta. Por que as pessoas não me deixam em paz, mesmo que o cadáver de meu corpo assassinado há meses exalasse um odor tão fétido que acordasse todas as pessoas e todos os prédios do mundo, e todos eles quisessem saber o que poderia estar apodrecendo aqui, ainda assim não quero que nada, ninguém, absolutamente nada e nem ninguém bata na minha porta. Quero que todos pensem que nenhuma forma de vida existe neste meu quarto.
_Eu sei que você está aí!_ diz uma voz feminina que me soa familiar.
Permaneço inteiramente emudecida. Tudo em mim está inerte. Até minha imobilidade anda estagnada em mim. Às vezes eu sinto que todas as bulhas e conversações das coisas e dos seres neste mundo são mímicas decepadas e sussurradas por este universo mudo e surdo.
_Eu sei que você está aí escondida. Vamos lá, abra logo esta porta.
Inferno. Será que ninguém pode usufruir o seu direito patético de se sentir infeliz, e de viver mergulhada em sua própria cova de autopiedade e de dor?!! Esse mundo já foi uma droga, pois antes podíamos ao menos nos anestesiar de quem não somos. Mas hoje em dia viver ou morrer são menos que paliativos. Levanto-me de estar em pé e caminho em direção à porta. Giro lentamente a maçaneta (espero que não seja a porra de um vizinho fingindo se preocupar com o meu bem-estar, ou uma velha desejando que eu lhe dê uma xícara com açúcar, e nem que seja o próprio Deus ou o Diabo me ofertando gratuitamente riqueza e salvação). Riqueza e salvação neste universo... Sinto vontade de rir. Nada há para ser salvo ou redimido, porque tudo já nasceu para nunca ser encontrado. Tudo. Até nós mesmos. “Já vou” _ respondo com ódio descendo pelos cantos de meus lábios.
Não pode ser você. Não pode, mas... Mas quem diabos é você? Não, você não é real. Estou sonhando ou estou drogada. Deve ser isso. Você jamais foi real.
_Eu sou muito mais real do que tudo o que você já sentiu ou tocou. Sou além de qualquer percepção_ afirma a mulher que é idêntica a mim.
“O que você é?” _ pergunto.
_ Eu sou a Morte, a mãe de toda a existência_ responde-me calmamente.
Entro para meu quarto rindo de mim mesma, e deixo a porta aberta. Louca, só posso estar muito mais louca do que costumo ser. É isso, estou louca, aqui neste quarto, dialogando com a Morte a qual é a transfiguração de minha imagem externa que carrego dentro de mim como se fosse um mar de fogo que jamais se cansa de transbordar a cada gota de suor e de abstrações que despencam do firmamento sepulcral do nada que gira, circula, amanhece, caminha, escala, almoça, semeia, ara, grita, se corta, reza, chora, ri, brinca, janta, lê, mas que nunca dorme em minha alma. Nem mesmo a noite consegue descansar dentro de mim.
_Você não está louca Clarisse_ objeta a Morte com uma voz suave.
“Bem, então quer dizer que eu sou a personagem secundária de uma parábola, e você é uma espécie de símbolo que está aqui tentando me conscientizar de que eu mesma sou a minha própria destruição, e que as chaves de minha redenção estão ocultas em algum baú enterrado em meu ser, portanto eu sou a minha própria morte ou a minha própria salvação, não é isso mesmo?!”
_ Não é nada disso Clarisse. Você pensa demais. Eu sou a Morte, e não pareço com você e nem com ninguém. Tudo e todos são minhas criações, são meus filhos e filhas, como também eu posso refletir em mim a imagem de cada um de vocês, vocês todos podem tocar e sentir literalmente o meu reflexo dentro de vossos âmagos.
“Ok, ok. Já entendi. Eu estou conversando com o meu inconsciente filosófico e religioso que busca inconscientemente, quem sabe, amenizar as paranoias e sofrimentos que sinto. Já entendi tudo. Obrigada senhora Morte, ou seja lá quem ou o que tu sejas, mas tenho coisas sem sentido e absurdas a fazer. Boa tarde e vá pela sombra”.
_ Você pensa que conhece o seu desconhecimento Clarisse? Em mim estão guardados todos os segredos que tanto anseias Clarisse em encontrar, e os quais jamais revelarei a ninguém, até mesmo quando chegar a tua hora._ acrescenta, mudando a Morte o tom de sua voz para uma forma mais áspera.
“Então de nada serves para mim, e nem a ninguém. Não quero mais continuar essa conversa. Se quiseres, podes te sentar no sofá bem aí perto de ti. Mas, por favor, deixe-me continuar na presença de minhas ausências. E, se não for pedir muito, quero silêncio total”.
_Clarisse, seu filho morreu.
“O que? É mentira? Você nem sequer existe, é só uma alucinação de minha mente?”
_ Por favor, Clarisse, ultrapasse esse estágio de negação. Seu filho está morto. Morreu faz poucas horas. Ele se encontra agora dentro de mim. Vocês humanos costumam mentir sobre tudo, e criam invenções e consolações de todos os tipos sobre o que desconhecem, principalmente sobre mim. Eu jamais minto Clarisse. Sinto lhe informar, mas seu filho que tanto amas está morto, e nunca mais o verás.
Fiquei quieta, sem encontrar resposta ou indagações nenhuma dentro de mim. Senti-me completamente abandonada, indefesa e um ódio tão profundo, tão cheio de pavor e raiva se apoderou de mim, que pensei que morreria ao sentir toda essa carga de sensações. Meu filho morreu! Meu filhinho está morto... Eu não valho nada, eu sou o mais imprestável lixo humano, eu sou o pior esterco de pessoa que já peregrinou neste planeta. Perdoe-me meu filho, perdoe-me...
“Tudo bem, meu filho está morto. Responsabilizar a mim, ou a ti Morte, ou a qualquer outra circunstância ou ser seria em vão. Não nego minha tristeza. Na verdade eu lhe confesso: sinto-me tão horrorizada e triste comigo mesma, mas nada irá trazer meu filhinho de novo. Nada. Não te odeio Morte, mas também não quero ter mais nenhum contato ou conversa contigo. Tu não és melhor do que nada, assim como eu sou melhor do que és. Não farei hipóteses sobre como estará meu filho agora, e nem quero demonstrar força ou indiferença da minha parte. Já que não mentes, e somente eu sei a profundidade de toda a dor que uma mãe pode saber e pode sentir ao perder o seu tesouro mais valioso: o filho que ama. Você Morte não ama a nada, e nem a ninguém.”
_ Tudo bem Clarisse. Eu já sabia o que irias me dizer. Eu conheço melhor do qualquer ente, em todos os universos que criei, o que é o mais autêntico e substancial aniquilação, perdas e silêncio. Fique a vontade.
Já não me bastava tentar suportar a mim mesma, e superar a dor da morte de meu filho (algo que é insuperável), agora essa coisa fisicamente semelhante a mim, sentada no sofá, e que se autodenomina “Morte”. Eu não deveria ter saído da cama hoje. Certamente eu não deveria ter aberto essa maldita porta que nunca desiste de tentar abrir a passagem para alguma coisa sair ou entrar. Eu não devia... Maldita vela cuja luminosidade chora e geme e suplica aos berros, porém nem o mais atroz vento ou enxurrada conseguem apagá-la das minhas mãos. Sempre esses sábios com seus sofismas intelectuais, sempre essas fábulas com seus ensinamentos moralizantes, sempre essas parábolas visando que possamos aprender algo, sempre uma lição nova para ser aplaudida e entendida. Não é entediante que todos querem melhorar aos outros, como se cada um possuísse as fórmulas incondicionais de ser feliz, de reconstruir o mundo para ser um lugar melhor, e as involuções jamais cessam. (Meu filho morreu! Meu filhinho está morto...)
E quando abri a janela, eu vi cinco mulheres e cinco homens ao redor de uma fogueira, sendo que dois deles se gloriavam a tal ponto que gargalhavam sobre seus feitos embrutecidos; e outros dois deles veneravam a beleza irreal de seus próprios corpos, e uma mulher encobria sua luxúria com trajes de puritanismo religioso; e outros dois entregavam-se ao ódio e ao amor sexual pelo conhecimento e pela sabedoria; e um certo rapaz entorpecia o vazio de sua alma com narcóticos, livros de autoajuda e música, e um velho ancião dançava ao redor da fogueira, louvando as pobrezas que a ciência e as tecnologias tentam ocultar, enquanto o décimo homem odiava a si mesmo por tudo o que havia conquistado, por tudo o que havia erigido e por tudo o que havia desperdiçado, e todos permaneciam naquela caverna abismal_ nessa caverna que é a casa, a rua, a ponte, o carro, o bar, as lojas, as feiras, os locais de trabalho, os hospitais onde cada pessoa murmura suas alegrias e dissabores. E a seringa entra no corpo, assim como uma palavra, um livro, um beijo, uma saudade, um sonho, uma sorriso, uma mentira, um desejo, mas o coração não consegue afogar na luz essa chama de vida que luta e se agarra dentro de nós, como se cada um de nós fôssemos uma arena de poeiras que lutam nos dorsos dos ventos secos, áridos e gélidos que vem e vão em nossos corpos, e olhamos para a esquerda, e é sempre o que já se pensava, e olhamos para dentro de nós, e um novo abismo sorri diante de nossas faces, e o tempo está tão quente aqui neste quarto, nesta casa, neste mundo, como se algo estivesse nos torrando lentamente em um forno incansável, antes de sermos devorados de uma vez por todas. A Morte me olha como se me compreendesse. Não vou diviniza-la. Temo-a apenas por puro instinto orgânico. Mas é só. Só isso. Não espero explicações nem da morte e nem da vida, e nem de ser algum. Não vou afirmar se as coisas existem, ou se algo tem vida. Basta por hoje de afirmações e alegações. Sinto dores no peito. Meu braço esquerdo dói. Pode ser o início de um ataque cardíaco. Estou com medo? Sim, mas nem medo e nem coragem podem nos salvar quando o barco em que pensamos convictamente remar nossas vidas estar afundando, por mais habilidosos e justos que nós sejamos, o tempo engole a tudo e a todos.
Nada é poupado neste universo. Nada. Será que não passamos de um conjunto de slogans e chavões que seguem estereótipos que achamos convenientes para uma melhor aceitação, adaptação e progresso? O que somos realmente, para definirmos o que não queremos? Somos paradoxos tentando equacionar as peculiaridades, singularidades e diferenças que compõem cada ser vivo? Somos o fruto do que decidimos ser, ou o resultado sempre incompleto do que nos tornaram? Estou encharcada de perguntas e de cansaço. Sinto sua falta meu filho. E como te sinto agora em meu coração. Mas não posso me enganar, embora já possa estar me enganando ao pensar que não posso me enganar. Mas eu ainda sinto meu filho vivo, muito mais vivo do que milhões de pessoas que saem de casa e que vão ao trabalho todos os dias, e ele sorri, brinca e ainda me diz “te amo mamãe”, e é tão lindo vê-lo sorrir, vê-lo correr para meus braços. Tudo acaba desaparecendo. Quem me dera que a vida fosse pelo menos a narrativa de um conto, de um poema, ou de uma crônica cômica, ou um drama repleto de finais funestos, mas a vida, por mais fictícia que possa ser, ainda assim é desinteressante, é um pássaro morto engaiolado em um planeta em que não há horizontes para voar e nem oásis para se iludir.
Lembro-me quando minha mãe era espancada por meu pai quando ele chegava bêbado em casa, e depois espancava minhas irmãs, e eu me colocava na frente e eu lhe dizia: “Vem, despeje toda a sua covardia em mim, deixe minha mãe e minhas irmãs em paz. Vem, eu não tenho medo de você, e nem da dor, aqui esta meu corpo, pode me surrar seu desgraçado”. Ele me espancava pra valer mesmo, mas eu nunca o odiei, e nem amava a dor das surras. Eu apenas queria defender quem eu amava. O tempo, as horas, os momentos foram passando e as vicissitudes de nosso ambiente familiar foram sofrendo alterações, e depois já não havia mais aquele amor e aquela cumplicidade em proteger um ao outro, em exprimir simples frases como “obrigado pelo que você fez por mim”. Até as saudações matinais e noturnas desapareceram lentamente. Havia apenas estranhos no mesmo ninho, ligados pela consanguinidade e hereditariedade, repetindo os mesmo assuntos aqui e acolá em alguns momentos em que o silêncio nos empurrava a querer pronunciar alguma palavra, alguma temática em que se via nos noticiários ou que se comentava sobre algo ou alguém na cidade. Pouco importava. E eu sentia que tudo era culpa minha, porém eu não alimentava e nem ouvia o que essa culpa poderia me ensinar ou me comunicar. Lembro que no natal a gente dormia cedo esperando o papai Noel depositar presentes ao lado de nossas camas, e quando acordávamos, eles estavam lá, e a gente sabia que era nossa mãe que economizava dinheiro durante meses e meses para nos comprar alguns presentes simples, e havia tanta alegria e felicidade em nossos olhos, e nosso coração pulava de gratidão e de entusiasmo. “Vamos brincar”. Hoje eu penso se nós não somos meros brinquedos em que a vida usa para se entreter, e que depois se entedia conosco, e nos troca por outros brinquedos que ela acha mais interessante, como se mudar os objetos que aparentemente causam a sensação de prazer e euforia que se interpretam como felicidade fossem transmutar alguma coisa de fato.
Deus meu, por que tu desamparaste teus filhos e filhas, a quem tu sopraste o fôlego da vida, a quem tu formaste com as tuas próprias mãos divinas e sagradas? Por que Senhor? Nascemos apenas para louvar o teu nome, para seguir tuas ordens, para aprendermos com as tuas palavras e ações que nos deixaste através das escrituras? Se sabias que o mal e o sofrimento iriam acontecer e se espalhar a toda a descendência adâmica, por que mesmo assim continuastes com tal plano? Para provar que tudo podes, para provar que tudo está só o teu controle, para provar que tua onipotência é inabalável? Para provar que nunca falhas e nunca erras? Mas tu Senhor já sabes de tudo isso, então foi para nos ensinar? Mas tu mesmo fizeste o coração humano cheio de conflitos, dúvidas, erros e incertezas. Não busco culpar ninguém, apenas desejo entender. Apenas isso: quero apenas entender. Pode ser! Acho que estou perdendo tempo com essas minhas análises teológicas, como se uma voz palpável do céu descesse em forma de uma nuvem, e nos decifrasse tudo. A vida nasceu para ser decifrada ou para ser vivida? Os dois? Não só as duas coisas, sempre há mais do que duas coisas. E até as certezas querem continuar debatendo sobre suas próprias veracidades.
Ó vil presunção e jactância do coração humano é este querer ser eternizado conscientemente, como se fôssemos o ápice evolutivo do cosmo, e de tudo o que imensamente é deveras desconhecido e indeterminado. Ó maldito destino é esse reservado a luminosidade da vela_ essa luminosidade tão efêmera e cristalina, e tão utilizada em prol de ideologias e idealismos tão quixotescos e ridículos. Olhai as lágrimas que escorrem pouco a pouco do frágil corpo da vela que jamais foi, pouco é, e nunca será. Assassinada está essa vela em minhas mãos_ este corpo encaixotado de devaneios, ilusões e sentimentos. Eu choro. Eu choro muito, porém os muros, o chão e o teto em que os dedos ígneos da vela afagavam tão ternamente e emanavam as lágrimas de sua existência e de suas dores já foram apagadas da memória do mundo, da vida, da morte, enfim, de tudo, mas eu sinto que minhas lágrimas fazem mais sentido do que qualquer coisa que exista lá fora, como também em qualquer jardim ou em qualquer escombro desse cosmo. A morte deposita um cigarro na boca. Ela é tão patética quanto eu sou. Chega de autopiedade e de sátiras. Sei que ao girar a maçaneta desta minha porta, o mesmo mundo esclerosado, insano e novo que abandonei ainda me espera com os velhos escudos, espadas e medos que também habitam dentro de meu íntimo. A porta está aberta. Meus olhos contemplam a nudez disforme que todas as portas velam. A porta sempre estará aberta, pois ela jamais se destrancou. A vida ainda neva intensamente nos subúrbios paralíticos e nas metrópoles míopes de meu ser. Enfim a minha aurora acordou perante meus olhos neste céu tão desfigurado e revisitado.
Gilliard Alves