Santo Coiso

Santo Coiso





Santo Coiso foi parido e embora num dia torto ache tudo muito sofrido, permanece ciente de que ainda não se tornou santo de fato, está no caminho, repousando quando sua mente lhe dá trégua num pavimento intermediário. 

Santo Coiso é o padroeiro dos frentistas, que se molham de gasolina e outros derivados do petróleo, ficam 12 horas de pé segurando mangueiras, enchendo pneus e vendo a vida passar feito o náufrago agarrado a uma tábua no sabor da maré, quando absorto divisa os grandes navios que passam ora raspando, ora ao largo, mas nunca lhe jogam uma bóia.

Quando jovem, Santo Coiso lhes dava gorjetas.

Santo Coiso vela também, no mais profundo silêncio, pelas meninas e meninos de aparelho nos dentes, risonhos, tatuados, com mil cabelos e brincos, são lépidos, falantes, vem de muito longe para ocupar praticamente todos os lugares atrás de balcões, todas as plataformas de metrô e pontos de ônibus, todas as calçadas, ruas e avenidas, usam mochilas, sussurram no celular, estampam uma vontade que Santo Coiso já não conhece, há uma ingenuidade forte como uma gargalhada em seus semblantes, alguns vão cumprir seus destinos na enchente das balas perdidas, nos rituais etílicos, nas perversas filas do pronto atendimento, uns terão a fortuna de perder cabelos, criar barriga e ver os filhos crescerem. Outros tentarão de novo e voltarão como cristais.

Santo Coiso sabe de tudo isso e muito mais. 

Quando moço e ativo, zelava pelos cachorros de rua, tanto por aqueles cheios de sarna, magros, no bico do corvo, como pelos garbosos, os cães sem donos, donos do mundo, a vida e dignidade que emanava deles era indescritível. 

Durante um período não mensurável de tempo Santo Coiso focou sua atenção nos carroceiros, descobriu que as carroças vazias pesavam 100 quilos e os que as puxavam trafegavam uma quantidade de quilômetros diária cuja cifra chega a ser aviltante, senão pornográfica. Nessa época ele vacilou.

Foi quando alguém mais instruído do que ele disse as palavras mágicas: não desista, uma vida move muitas outras vidas. 

Só que aí apareceu mais um, que muito tacitamente proferiu: você não veio para viver uma vida que não seja a sua. 

Surgiu então seu primeiro grande dilema.

Verdade seja dita, ninguém apela para Santo Coiso. No mundo externo, sua existência é desconhecida. No mundo interno todos observam sua caminhada e lhe prestam auxilio para que um dia ele chegue na plenitude. Dá-se então um estranho efeito - ele se divide entre os dois mundos e empaca feito uma mula. Absolutamente quase todos os dias, que por sinal deixou de contar há exatos 13 dias, dia esse onde percebeu que raros são os que ainda aguentam seus truísmos, suas descobertas de polichinelo, suas piadas suspeitas de um humor caduco, sua postura incompatível com a evolução dos tempos.

Nos 90 S.C. dedicou-se a proteger as abelhas, as taturanas e os tatus-bola, também conhecidos como tatuzinhos-de-jardim. Ganhou um tapinha nas costas e uma plaquinha com os dizeres: continue assim.

Há uns tempos atrás Santo Coiso começou um curso noturno para se aprimorar, e doze mestres lhe ensinaram, ou ao menos tentaram, acerca dos principais botões de comando para existir. O primeiro mestre lhe disse que tudo é energia e a energia vibra. O segundo, através de gráficos e slides esclareceu que “tudo na tua vida é 100% da tua responsabilidade e está sob teu completo poder. Se não tomas esse poder, algo ou alguém vai fazê-lo”. Já o terceiro mestre, de modo muito brando, contou que as suas escolhas definem o traçado. Se não fazes escolhas, o acaso e a sorte tomam conta. Para produzir resultados, define a sua intenção. O quarto mestre, lacônico, disse apenas: não há limites para aquilo que podes expressar e atingir. O quinto mestre, que já chegou com ar enfadado, foi breve: o que envias, ações, palavras, pensamentos e sentimentos, recebes de volta. Santo Coiso ficou atordoado com tantos ensinamentos.

Nas tardes de sábado ele repousa numa praça semideserta e quando avista um mendigo ou outra criatura apurada lança raios de luz rosa sobre suas silhuetas. Ao cair da noite suspira, se retirando com vagar para a Reunião de Santos, na travessa da Velha Graça. Lá todos ficam em silêncio por uns instantes, então começam a falar de seus pecados.





 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 23/02/2013
Reeditado em 30/05/2021
Código do texto: T4155843
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