Confissões: 3ª Parte
"É possível viver"?!! Bebo água às três da manhã. Não durmo direito. Até quando eu durmo toda a minha alma ainda permanece acordada, sempre velando o nascer de um irrisório gesto que possa surgir no universo e dentro de mim mesma. Nunca durmo e nunca estou acordada inteiramente. Estou constantemente de ressaca da vida, afinal viver é uma persistente náusea que nunca se consome em nosso fígado, e que nosso olhar náufrago ainda reluta em encontrar uma ilha, um porto, um farol; lembro-me de minhas antigas amigas, nas horas de diversão e de serenidade, eu recordo que antes delas abrirem os lábios eu já mastigava os teores de seus discursos, mas eu sorria, eu tinha que sorrir, era preciso sorrir e fingir que tudo o que era proferido ou feito era algo interessante, cômico, ou inteligente, ou idiota, era sempre alguma coisa em que eu deveria exprimir de mim algum tipo de atenção ou reação do que elas faziam, e eu me odiava por tudo aquilo, não que desejasse ardentemente esconder uma carência emocional de afetividade ou de identidade, nada disso; eu me odiava por ter toda essa imensurável e idiota ânsia de que as pessoas necessitam de aceitação, de sermos ouvidas, de ter pessoas para confidenciar alguma coisa, ou ficar concordando ou objetando algum assunto colocado em pauta, eu sempre detestei tudo isso, e ainda que houvesse a possibilidade de falar a todos que eu odiava toda aquela encenação vazia e ao mesmo tempo saturada de interpretações humanas, mesmo assim eu continuaria detestando qualquer outra escolha, por mais sensata ou irracional que eu julgasse ser. Não havia distorções internas que idealizavam a realidade em outras coisas, pois tudo em si já era distorcido antes de qualquer concepção ou origem. Eu tinha nojo tanto da solidão como da possibilidade de qualquer tipo de companhia. Não sou complicada. Algo ou alguém que tente me solucionar só prova que este mesmo ente é um ser problematizante e narcisista com complexo de um messias de botequim.
"Como é possível viver"?!! A TV espera para ser ligada, assim como a geladeira para ser aberta, assim como portas, gavetas, pernas, bocas, livros, vaginas, céus, infernos, computadores, sempre alguém busca algum tipo de porta como se ela fosse levar a um novo mundo, um a uma nova rota de fuga ou de promessa. As portas me ensinaram que sempre a essência das coisas deve permanecer fechadas, e que não é a quantidade de portas abertas ou conquistadas que determina o valor de uma pessoa, mas é a sua persistência em continuar caminhando, quando tudo nos seduz para desistirmos. O motorista abre a porta do carro, enquanto uma garota finge não estar interessada em transar com o cara que conheceu naquela festa; e mais uma doença é gerada pela indústria farmacêutica, sendo que um novo filósofo destrói as lacunas e alicerces que um grande pensador afirmou séculos atrás, mas aquele outro assassino estuda os hábitos de sua próxima vítima, e o policial cheirou cocaína antes de beijar seu filho de cinco anos de idade e de ir trabalhar nos guetos da criminalidade, sob os olhos atentos de um escritor alcoólatra que escreve mais um poema instigante neste mundo vendido para a mentira, contudo milhões de cidadãos riem de corpos mutilados em frente da televisão, e mais um demônio é retirado de um garoto depressivo e esquizofrênico, e aquela corda está exausta de ouvir lágrimas e lamentos de quem a usa para se enforcar por um motivo qualquer; mas a funerária aguarda com semblante de pesar e com o coração pulando de alegria o corpo do tal suicida junto com o dinheiro que a família dele gastará, e observando o céu a todo esses conventículos de abutres lança uma tempestade que mata trezentas e vinte e três pessoas num vilarejo da Ásia, agora sendo o holofote das mídias virtuais, impressas, jornalísticas, e de debates em bares, igrejas e universidades. Como a nossa desgraça é tão divinamente lucrativa e monopolizada. São sempre as mesmas dramaturgias patéticas de vinte mil anos atrás, pleonasticamente atrás, todavia minha buceta está bem molhadinha desse êxtase de tédio comendo tédios; de tédio parindo tédios; tédio comprando e vendendo tédios; tédio evitando tédios; de tédio fornicando de todas as formas com os nossos tédios, e é tão entediante esse discurso sobre o tédio, e sobre tudo.
É possível viver? É deveras possível viver?!! Por quê? Porque podemos... Toda argumentação e ciências não justificam nem o viver e nem o morrer. O coração humano está além das intelecções de nossa lógica e razão?! A razão interroga, e o sentimento vibra ondulações sistêmicas que atingem o mais íntimo de nossas almas?! Porém piscamos os olhos para disfarçar os tremores sísmicos que a cada instante transformam as geográficas subjetivas deste nosso sentir tão indeciso e ortodoxo. Uma voz, um ruído, um som, um grito, uma súplica, algo ressoa sempre simbologias perante os nossos corpos surdos e esclerosados. Parece que nada em nós consegue permanecer em silêncio, pois são tantas espécies de vozes e alaridos que fluem e fluem e fluem por todo o nosso corpo. Estamos abandonadas a conviver consigo mesmas e com os outros? Estamos destinadas a trilhar os mesmos labirintos helênicos, ou de qualquer nova dialética cultural qualquer, pintados com novas cores e brasões? E continua a doer na raiz profunda de nosso pensamento e de todos os ossos de nossa alma cancerígena essa frase: é possível realmente viver?!!!