Crônicas de Família - O CESTO DE PORCELANA
Não há precisão de data, nem mesmo de ano, mas deve ter sido lá por 1970 ou 1971, pois havia ainda pouco tempo da mudança para a casa da rua Frutuoso Rivera, nas proximidades do “Casino” da cidade de Rivera, palco de uma infância muito especial , que registrou entre outros tantos momentos o singelo fato que sustenta este texto . Vamos direto a ele ...
Era o Dia das Mães e desejava dar um presente para a Dona América, minha mãe nunca fora uma pessoa exigente e nem daquele tipo que ficava sugerindo presentes e dando azo a desejos consumistas, coisa e tal. Mesmo porquê eram outras épocas e não havia – ainda – se manifestado essa explosão coletiva de querer tudo, descartar tudo , trocar tudo e na ciranda do tudo , restar como legado da ânsia de ter , o quase nada ...
A linha divisória, em frente ao Cerro do Marco, ainda não era pavimentada e a fronteira Livramento-Rivera ostentava ares de interior , mas já atraía visitantes –embrião de um turismo de compras – nem perto do que se vê nos dias atuais, mas dava já lá os sinais de que a vocação fronteiriça pelo comércio era muito mais do que uma tendência. Era um caminho natural.
Pois bem , onde terminava o calçamento de paralelepípedos e iniciava o chão batido havia uma loja chamada “Casa das Porcelanas”, que vendia uma infinidade de produtos , desde pequenos itens de decoração, cinzeiros, porta-jóias até recipientes maiores e conjuntos de pratos, entre outros tantos objetos de decoração e/ou utilidade doméstica.
Com as economias dos dinheiros “matados” e ao custo do sacrifício de algumas guloseimas , juntei um numerário que não permitia comprar muita coisa. Cheguei no comércio e fui correndo os olhos nos objetos decorativos mais caros, pratos, tigelas, até o setor onde estavam os produtos menores. Passei o olho num cinzeiro e lembrei que em casa quem fumava era o pai e , portanto, não fazia sentido algum comprar um cinzeiro para a mãe . Até que cravei os olhos no pequeno cesto de porcelana.
O cestinho entraria para a história de nossa família, onde está - e penso estará - pelo resto de nossas vidas . Um objeto tão simples – tão pequeno quanto pequeno seu valor econômico – mas que marcou porque , numa pequena tragédia , tão logo desembrulhado o pacote do presente, involuntariamente eu mesmo deixei-o cair no chão , onde espatifou-se partindo-se em numerosos fragmentos . Eram pedaços de porcelana espalhados por todos os cantos.
Sob o olhar de descrédito e de piedade de minha mãe, que soube entender todo o conteúdo de sofrimento do momento, fui recolhendo cada um dos pedacinhos, do mais minúsculo ao maior , sob ponderações da Dona América que dizia para jogar os cacos no lixo, enquanto pedia para não ficar triste e que “valeu a intenção” . Mas não foi o que fiz . Juntei tudo, algumas borrachinhas de dinheiro, um rolo de fita durex e um tubo de cola branca – tenaz – e fui para meu retiro trabalhar pacientemente na reconstrução do cesto.
Fui colando tudo por estágios e conforme a necessidade usava a fita durex ou as borrachinhas de dinheiro para manter sob pressão as partes reunidas e coladas. Ao final de dois dias o cesto estava totalmente restaurado e era necessário um olhar muito atento, literalmente “cravar” o olho para notar algum pedacinho que não pôde ser colado, porque esfarelou. Mas no geral o pequeno cesto ficou quase original.
Pensei que , pelo menos por algum tempo , minha mãe iria desfrutar do meu presente. De alguma forma, estava “salvo” . Minha mãe lembraria de mim, do meu presente e do meu carinho. Estava recompensado ...
No momento em que escrevo este texto impregnado de saudades e centrado em algo tão minúsculo no plano material , mas tão gigante no plano emocional – já conto com cinqüenta e um anos de idade – passaram-se quatro décadas do episódio da quebra e da restauração e num final de semana de janeiro de 2013 viajei a Rivera para desfrutar de algumas horas no aconchego do lar materno .
Sentado no quarto com minha mãe, conversas do tipo daquelas em que não dá nunca vontade de parar, olhei para a velha cômoda – móvel daqueles que não se fabricam mais hoje em dia e com um espelho que mãe sempre cobria em dias de tormenta - e , lá num canto , cheio de linhas e agulhas de costura entre outros badulaques, estava ele – o pequeno cesto de porcelana ...