O Poeta e a Cotovia
Poeta, por que tua arma não possui balas? Nem sei se arma tens. Por que então falas? Às vezes suave, outras rude desse tal de amor. Que abastece os humanos como os jardins de flor.
Ora cotovia, minha arma é o amor. Com ela posso provocar dor. Fazer aquele lago, seco, se encher. Basta o coração de uma donzela amar. Que logo o lago se enche. Das lágrimas que lá vão repousar. Poderosa essa tua arma, poeta. Pois nem mata, nem machuca, mas faz amar. Poderias a tudo dominar. Largar essa vida de mendigo. Deixando de repartir meus frutos comigo. Podendo ter um palácio, onde todo verão, iria, eu, fazer meu ninho.
Mas o que adiantaria ter um palácio, cotovia, e tu o teu ninho? Se eu faria do amor um escravo. Ordenando para habitar naquele peito. Enquanto o outro que meus olhos ambiciosos não enxergarão ficará chorando. Culpando a lua e as estrelas. Para que ser rei e possuir trono, prata, ouro? Prefiro deitar-me a está árvore e adormecer. Acordar com seu lindo canto. Sabendo que o amor irá viver.
Falas tanto em amor, poeta. Mas toda manhã quando acordo para contemplar a vida, vejo-te ainda dormindo. A teu lado, tua sombra. Estás sempre sozinho. E toda noite quando volto a repousar em meu confortável ninho, penso em ti, meu amigo. Não pela chuva que te molha. Nem pelo vento que te seca. Mas porque estás sozinho. E quem te ajudará a sair da poça, quando teu corpo nela cair? Quem arrumará teus cabelos, aliás feios, quando o vento passar? Um dia ficarás velho, amigo. Quem irá te ajudar?
Enquanto tu adormece, linda cotovia, a noite me banha com suas alegrias. Claro que não nego que posso cair na poça. Afinal, o vinho depois de uma e outra, me leva ao chão. Mas, mesmo caindo, terei forças de levantar-me, como fiz ontem. Para aqui chegar, quando tu acordar. Por estar sozinho, às vezes sinto um vazio. Até invejo o coelho que na toca tem a coelha. O leão que tem a leoa. A formiga que tem todo um formigueiro. Porém, penso na liberdade que possuo. Se eu tivesse minha toca, não teria conhecido minha vida. Nem a ti, cotovia.
A cada dia, deixa-me mais confuso, poeta. Conheço por minhas viagens ao redor do mundo, dos ninhos que outrora faço no sul, outrora no norte, pessoas que possuem tudo: casa, família, dinheiro. Que parecem ter nada.
Outras que dormem em suas luxuosas camas, mas somente sonham com o palácio que poderias tu ter, mas renegas. Todos vivem reclamando daquilo que possuem, pois querem mais. Quanto a ti, vejo te contentares com a noite que é deles também. E com o vinho que eles bebem quando querem desabafar. Talvez tu sejas um anjo perdido que de tanto incomodar a Deus, com tuas conversas e Teus poemas compridos, foi jogado, aqui debaixo de minha árvore, para contar-me tuas aventuras que nunca possuem um fim. Queria entender-te, poeta. Mas tu és um segredo. Para outros, um simples bêbado. Para mim, um segredo
Talvez eu seja um anjo, cotovia. Mas para que um anjo beberia? Também conheço essa gente metida que por possuir tudo, quer o que outro possui. E nunca em suas vidas encontram a felicidade. Que se esconde embaixo do nariz, como a verdade eles escondem embaixo dos tapetes. Enquanto estou aqui, posso ser feliz. Lá estaria preso, como numa gaiola sem chave. Aqui posso correr, pular, assustar as crianças com minhas roupas velhas, fingindo ser o bicho-papão. Ou, apenas sentar na calçada e escutar os velhos que ninguém mais escuta. E o mar, não vou lá somente para atirar-me em suas ondas. Para isso existem os peixes, corais, tubarões. Vou lá para sentar-me na areia, deslumbrando os segundos que faltam para o nascer do sol. Assim reparto com o mar, a vida. Tirando lá do fundo minha alegria, que aqueles que ali se banham afogam, com suas tristezas, desarmonias.
Hoje irei dormir tranqüilo, poeta. Serei uma cotovia sonhando até o outro dia. E quando acordar, aos meus pés tu estarás, para dar-me lições que fazem-me ser sábio, mesmo na ignorância. Esta noite não irei mais preocupar-me contigo. Pois sei que alguém que enxerga a beleza onde os outros só buscam o prazer, deve ter a proteção de todos os santos, orixás, anjos. Até mesmo de Deus. Serei sempre teu amigo. Eu aqui em cima. Tu ali embaixo. Não é poeta? Por que não respondes, já que falas pelos cotovelos? Sei que só bebes quando o sol se deita. Ainda é cedo para adormecer. Acorda, poeta! Acorda! Quero te ouvir. Mas onde estão teus roncos, onde está tua respiração? Por que não bate teu coração? Usa tua arma poderosa e acorda! Por que teus olhos fecharam rápido, apagando o brilho que neles havia? Deixando aqui solitária essa pobre cotovia. Que de tão triste por tua partida, jamais a ninguém irá falar. Somente cantará um canto. Mais triste no mundo não haverá. Serei tua voz, poeta. Para os velhinhos abandonados, amargurados. Para as crianças serei mais um pássaro. Agora conheço a força de tua arma. É ela que me faz cantar, quando na verdade quero apenas chorar. E para sempre ser: A cotovia sem o poeta. O poeta sem a cotovia.
Poesia selecionada para a II Olimpiada Cultural - 500 Anos da Lingua Portuguesa no Brasil editada em 2005 pelo Clube Amigo das Letras - Barra Bonita - São Paulo.