Diário da Revolução
Hoje consegui levantar da cama sozinho e preparar meu café. Acendi meu charuto ali na varanda, como há tempos não fazia. As luzes do sol apenas começam a pintar o horizonte leste, e os pássaros parecem estar com preguiça de acordar e cantar.
A filha que cuida desse velho pai, ainda dorme em seu quarto. Atrasou-se com meu café, devido ao cansaço do dia de ontem. Ainda bem, pois ela não gosta que após o café, eu acenda charutos. E não gosta quando falo (quando posso falar, porque em geral mais balbucio e resmungo do que falo) sobre os ideais que ocuparam meu tempo, minha mente e minha vida.
Hoje achei meu diário, que minha outra filha disse ter se esquecido onde tinha guardado. Estava no meu guarda-roupa, junto com o terno com o qual eu disse que gostaria de ser enterrado...
“Meus inimigos estão no poder, por tempo indeterminado. Os dragões não eram moinhos de vento, e hoje infestaram o mundo e o puseram em chamas...” .
“Todos dormem. E acordam para contemplar a vida dentro da caverna. Para adormecer no fim do dia. Do lado de fora, já não há graça em ser maluco beleza, nem hippie, nem usar cabelo comprido, vestir a camisa preta da banda, e gritar na cara do Sistema. Ele não se assusta, ele grava a gritaria e vende os discos e as camisas, sem nos dar os direitos autorais...”.
“Ya no hay más revolución. Tínhamos que ter sido duros sem perder a ternura jamais, mas somos moles, e hoje temos medo, e sequer sabemos o que é ternura, e dela nos envergonhamos... O comandante disse que ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição genética. Porém, os guerrilheiros hoje vendem drogas, ou estão se digladiando nos estádios de futebol. Há os que pegam em armas, virtuais, e se tornam os campeões dos games...”.
“Do lado de fora, à luz do dia sigo o camarada grego, não me lembro o nome dele, mas sei que acendeu uma vela em plena luz do dia e saiu à procura de um Homem. Com ele, hoje acendo minha vela e procuro um Homem. Vejo algumas carcaças a desfilar, e serem conduzidas por soldados de chumbo, para dentro da caverna. Vejo o que sobrou dos meus heróis, os que não morreram de overdose, acorrentados e cabisbaixos, a executar trabalhos servis em troca de migalhas. Na boca, o discurso é o mesmo... e seguem o trabalho, pois o açoite canta e dói no lombo...”.
“No horizonte, vejo torres de marfim. Já próximo, ouço discursos acalorados, interessantes. São reduzidos grupos de gente pensante, a ensinar e discursar para as paredes, que ouvem tudo caladas, pálidas e frias...”.
“Não imaginava que o mundo fora da caverna seria como um exílio na Sibéria. Meu crime foi sair, meu castigo é enxergar. Ainda não encontrei um Homem. Quando me dizem: Ecce Homo, ouço o rebanho em coro: “eis o Homem”. Com o rebanho, sigo em romaria até ele, e após pagar o ingresso para tocá-lo, eis que o toco, e ao fazê-lo, vejo seu rosto desfazer-se em pó. O anunciado era mais um ídolo, não de barro, mas de areia, esculpido para cantar e dançar ridiculamente, para ser artilheiro nos gramados dos estádios ensandecidos, tirar a roupa frente às câmeras, ser o galã das telinhas, eleger-se presidente e governador, expulsar demônios em nome de alguém, ou alguma outra macaquice...”.
“A cantoria ecoa na memória: “eles venceram, e o sinal está fechado para nós, que somos jovens”. Mas ainda que se abra o sinal, com essa venda nos olhos, não o enxergarão. As forças ocultas venceram, fecharam o sinal, vendaram os olhos de todos, ou quase todos.”.
“Nasci servo e morrerei servo, mas lutei. Mesmo assim, deixarei algemas de herança para meus filhos e netos. Os dragões domesticaram e enjaularam meus filhos, e os macacos divertem meus netos, que crescerão felizes dentro das jaulas, e sonharão ser atração nos circos, junto com os palhaços e ídolos de areia que divertem os mutilados.”.
Apaguei o charuto, apanhei minha bengala e fui à procura de minha caneta, na gaveta do meu guarda-roupa, lá no quarto, o que hoje para mim é uma distância como que “léguas”. Preciso escrever...
“Nasci servo, morrerei servo. E ainda não me resignei. Recuso-me a voltar para a caverna, não quero ser velado e enterrado lá. O cansaço, a solidão, a visão do mundo desolado pela guerra do homem com a natureza, o açoite e o trabalho servil – para alimentar o monstro e comer as migalhas que caem de sua boca nojenta – não ofuscam o clarão, não diminuem o brilho de meus olhos e o calor de meu sentimento.”.
“Hoje sei a dor do que é ver e saber, mas não queria estar no lugar dos cegos, dos auto-mutilados, dos ídolos de areia, dos macacos da caverna, dos soldados de chumbo, dos dragões ou das “famílias e empresas ocultas”.”.
Para você que um dia vier a ler esse velho diário, de um velho revolucionário, não pense que me sinto derrotado. Hoje, após esse café e esse charuto, a mesma força que me fez preparar esse café e acender esse charuto, pegou a caneta e concluiu sua vida, em tese. Já posso morrer, não sei se hoje, amanhã, mas agora estou pronto.
Hoje sei que a vela do camarada grego, que saiu em plena luz do dia procurando um Homem, era a chama da lucidez, em busca de si mesmo, em busca de inventar-se, de tornar-se o que se é, como dizia um camarada alemão, que quando viu seu Zaratustra, dançou e foi zombado pelos que não ouviam a música.
Hoje canto minha própria música, e danço minha própria dança. Já sem forças para lutar, faço dançar a caneta... A tinta está no fim, o papel que resta, em branco, ficará para os que aqui chegar, para que continuem onde parei.
Fui servo, lutei, e servo morrerei. Mas lutar fez de mim o Homem que tanto busquei. Agora tudo faz sentido. Ainda que servo, me tornei livre. Ainda que engaiolado, voei. Voei para além da caverna, para além do homem-macaco, para além do rebanho. Descobri que nascemos na espécie Homo Sapiens, porém incompletos. Cabe-nos a tarefa de terminar a obra da natureza, tornando-nos Homens, além dos “bichos-homens”.
Não perdi a guerra, não foi em vão a revolução, pois eu a ganhei, eu me revolucionei a mim mesmo. Minha vida foi isso. Deixei o casulo do bicho-homem, para voar como Homo Sapiens. Hoje ,antes de alçar meu último e eterno vôo, posso dizer que valeu a pena...
Nota: meus filhos, peço-lhes ainda um favor, que a capa desse diário, onde consta “Diário da Revolução”, que mudem para “Diário de um Velho Revolucionário”, e que não o enterrem comigo... pois agora ele já não me pertence, ele pertence às futuras gerações. Espero que elas, pelo menos alguns, entendam, e, como dizem meus queridos netos “passem a bola pra frente”. É minha última vontade. Obrigado, sempre os amei, os amo hoje, e talvez – se estiverem certos disso, como hoje quase que estou – eternamente os amarei.
25 de novembro de 2012 - Salto-SP -- Escrito pelo velho revolucionário que vive dentro de mim, Eron Levy, com sua bengala e seu charuto, tentando sobreviver, dia após dia...