Diante do espelho
Encarou-me aquela figura desmembrada
Com um suave toque de ironia controlada
Nem imaginava ainda eu
O quanto a odiava.
Sem querer estendi a mão
Como se para ver se era real
Nada havia além da ilusão
O espelho se estilhaçou
Um presságio muito mau.
Nos estilhaços cortantes me vislumbrei
Novamente a imagem me encarou
Tão diferente dessa vez
Meu mundo desabou.
Eu era o reflexo
E isso me assustou
Claro, tudo isso tinha nexo
Naquele momento desconexo
A verdade se revelou.
E agora chega de poesia,
Minha sensação se tornou um fato.
Faço de conta de que não sou eu
E de repúdio escondo-me em devaneios
E de solidão me abasteço de mais medos.
Faço de conta de que não sou eu
Aquela imagem refletida.
Pode o mundo ter me transformado
Em garras e ferrões acabrunhados?
Pode o mundo ter me dado
Tudo o que desejei quando descobri o ódio?
Fragmentos de uma alma estuprada
Pelos próprios erros
E arrependimentos
E lamentos.
Resquícios do assassinato da bondade
Do coração latente que só sente
Não bate
Amortece.
Se me perguntam no que foi que eu errei
A imagem no espelho volta à tona
E seu dono vai à farra
Numa sufocante dança de rivalidade
Num macabro rito de crueldade
Os pedaços são colados com sangue seco
Costurados pelo desespero
Cicatrizados pela suficiência
Ocultos pela necessidade de vazio
E de normalidade falsa
Repugnante.
É dualidade que se desfaz em certeza
De dois não tem nada.
No espelho ou fora dele
A vista é a mesma.
Quem sabe o problema seja o espelho
E na superfície lisa de um lago
Outra imagem se revele.