A vidraça
Guiada pelos instintos alheios, sinto-me levada, pelo meio do nada, entre ruas claras, até a porta do abismo.
Olho ao meu redor, e lá está, fechada, a janela do infinito.
Eu, no meio da luta armada, vejo-me parada, ao lado do vidro.
Lá dentro está, desamparada, a figura de um menino.
Chamo-o, me aproximo. Mas lá continua parado, inerte; horas a fio.
Logo anoitece, e lá agora está um cara, de semblante distinto.
Em suas mãos está a vela, que clareia meu destino.
Diz-me ele então, as mesmas palavras, que já ouvira antes, mas todas juntas, num instante.
E a chuva escarlate que escorre na vidraça, nos acalenta, os infantes.
Fala-me de amor e liberdade e, nesse afago telepático, todos os fluídos se unem à aventura errante.
"Permita-me parar" - ouço sua voz. E, depois destes cinco dias percebo que nada me pertence, nem mesmo o direito à escolha e, por isso, soco o vidro.
Bato, esmurro e me retelo, até que em milhares de cacos, a sôfrega ternura de minhas mãos se acaba e a vidraça se rende e escassa.
Numa fina cortina de fumaça, quase tão alva quanto a brisa que me abraça, ele se esvái.
Sua respiração não mais ouvir-se-á, seu pulso não mais sentir-se-á, aos olhos não mais olhar-se-á, sua boa não mais beijar-se-á, seus cabelos não mais tocar-se-á e ao pensamento nao mais atrever-se-á.
Adeus.
Entro pelo rombo na cúpula de vidro e, sangrando, cato os seus pedaços, por menores que sejam.
Monto novamente o que agora é minha alcova, egoísta e solitária.
E cá estou eu, presa em minha cúpula de vidro, do outro lado do mundo, em meu próprio universo.
Cá estou, parada, no meio da vida, observando. Assistindo às vossas dúvidas, temores, medos e desejos.
Permaneço, esperando que o próximo prisioneiro de si mesmo venha e também me permita.
Permita-me parar de respirar.