Orfeu, não olhe para trás
“Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música
Nunca fujas de mim, sem ti sou nada
Sou coisa sem razão jogada, sou pedra rolada”
(Monólogo de Orfeu: Vinicius de Moraes & Antonio Carlos Jobim)
Orfeu meu filho, seu pai Apolo te orienta:
Erga tua voz, erga-a ao máximo e cante as palavras de Perséfone
Dela, teve a autorização para tentar; enquanto lágrimas caiam
Eu tentei meu pai, e as lágrimas eram de ferro, lágrimas de Hades que tiniam ao cair sobre as rochas
Ele me disse: Ouça a instrução, ouça bem, ouça-me com atenção:
“Não olhe para trás até que a luz do sol esteja sobre suas cabeças”
A chave para o céu, o abandono do inferno, o abandono de Hades!
Sou bem mais velho agora; outrora me faltou paciência
Tive convicção para chegar e tentar... Mostrar minha lira e toca-la
Hades se emociona? Ouvi falar que isso é impossível para o deus da Morte!
Embaixo do braço carreguei a esperança; ouvia ao longe, um grito de amor
Titubeei nas instruções e minha amada tragada foi pelo “mundo dos mortos”, e eu a perdi para sempre...
Eurídice, Eurídice!
No Livro das Revelações está escrito:
“O Deus dos Vivos resgatará todas as almas e vencerá a Morte!”
Como pode? Lá vem o velho James e o pobre Douglas, abrindo-o, lendo suas finas páginas
Todos os dias eles se reunirão com João e Paulo, falarão de música, mitologia, recitarão poesias em outras línguas
Fraca luz, enormes sombras, eles estão começando, mas já sabem as respostas para os medos uns dos outros
Nessa hora “só quem é aperfeiçoado no amor não teme o medo”¹
Era tudo tão simples, óbvio, claro e cristalino, bastava buscar o conhecimento e a sensibilidade no amor
A mesma sensibilidade que tive para convencer Hades, fi-lo chorar
Convenci o “deus das trevas” a libertar minha amada das profundezas... Mas a dúvida, fui traído pela dúvida!
Ah, essa dúvida pôs tudo a perder, não confiei, olhei para trás antes da escalada final
Fixei meus olhos nos dela, vi o que Eurídice pensava, e era o horror em meu rosto
Ela me seguia com todas as forças e tememos o meu gesto
Tememos o vazio que viria depois, sentimos...
... O vazio, vazio sob a claridade da vida, o vazio do meu coração!
Sim, ela sentiu o vazio do meu coração; sobre a terra, lágrimas
Sob ela, raízes que fincaram o sentimento, só a fogueira me libertará
Toco a lira e choro, choro poemas de amor, os pássaros se calam
Cérbero dormiu, atravessei o Rio Estige na presença de Caronte, respirei...
Espero, logo amanhecerá, virá o Juízo; só a arte me acalanta
Antes, fiz tudo certo, errei pela dúvida; não há mais silêncio, o pássaro canta...
... Em todos os lugares; posso ver exemplares antigos e perdidos
Das mais belas lendas e mitos, argonautas e deuses do Olimpo
Desejando serem relidas, para nas derrotas d’ alma, serem compreendidas...
“O servo fiel não teme seus perseguidores, eles só matam o corpo”²
Estão cortando a árvore, sou um carvalho silencioso... Meu tempo acabou!
Cai o tronco, vai-se a vida... Estou voltando àquele lugar outrora conhecido
Volto finalmente para os braços de minha querida
Agora sem medo, descubro o maior dos sentimentos humanos, ainda estou te amando...
Por toda a eternidade: Eurídice, Eurídice minha amada!
Venha me receber, ao Reino dos Mortos estou me adentrando!
¹ 1º João 4:18: Novo Testamento
² Lucas 12:4/5: Novo Testamento
*Apolo: Na mitologia grega: Divindade influente e venerada, filho de Zeus e Leto, pai de Orfeu.
*Perséfone e Hades: Na mitologia grega: Rainha e Rei dos Mortos.
*Eurídice e Orfeu: Na mitologia grega: Um casal apaixonado. Eurídice morre e Orfeu tenta resgatá-la do reino de Hades.
*Livro das Revelações e Juízo Final: Apocalipse de João
*Deus dos Vivos: Jesus Cristo.
*João e Paulo: Apóstolos do cristianismo.
*Cérbero: Cão de três cabeças que vigia a entrada do Reino de Hades.
*Caronte: O barqueiro que faz a travessia do Rio Estige para o Reino de Hades. Na mitologia grega, toda alma deveria pagar uma moeda para poder realizar essa travessia. Era costume entre os gregos colocar uma moeda escondida na boca do morto antes do enterro para que ele pudesse pagar Caronte.