PROVA DE FOGO
Por Carlos Sena


 
Hoje eu não me sinto como quem partiu ou morreu como na canção de Chico. Partir? Quantas vezes parti. Numas, eu sobrevivi inteiro, noutras quase morri. Partir gera angustia e solidão e, qual também uma cantiga popular, um triste adeus em cada mão. Ir embora do que conhecemos como, por exemplo, uma relação desgastada, dá sofrimento mesmo assim – sendo ela desgastada. Quem fica deve também sofrer, mesmo que por dentro ria de nós, do nosso amor não correspondido. Mas mesmo isso passa, porque na vida essa regra não se desgasta nem se anacroniza nunca. Passar! Talvez seja esse “passar” o refúgio dos que partem deixando pra traz um grande amor, ou amores a granel como filhos, amigos, sonhos. Sonhar é como navegar: preciso. Morrer? Nem é tanto preciso, quero dizer, necessário. Talvez seja melhor morrer pela independência que tem a morte. Partir, não. Partir, nos leva a uma morte lenta por dentro: ao fazê-lo nossos sonhos morrem um pouco, nossas certezas morrem um pouco, nossa solidão se aumenta um pouco, talvez muito. Penso que a solidão seja algo como irmã gêmea dos que partem independente dos motivos. Partir pra guerra, por exemplo! Deixa-se pra trás famílias, sonhos e amores tudo junto e de uma só vez. Mas o pior da guerra não será o “confronto entre os que se odeiam, mas a separação entre os que se amam”. Imaginem que, enquanto se parte e quando se deixa pra traz a vida, é uma morte lenta que nos invade à prestação. Daí ser a morte menos invasiva, pela sua capacidade de nunca ser metade, nem ter meio termo como a separação dos nossos sonhos e dos nossos bem quereres que a vida muitas vezes  determina o fim.
Hoje, pois, não me sinto partindo nem morrendo, certamente. Hoje apenas me parto entre o desejo e um deus grego; entre a boca e o beijo; entre o sol e o solfejo; entre a viola e a violência; entre a dor e a dormência; entre o falo e a falência; entre entrar e sair de mim sem que eu deixe de ser eu mesmo um minuto sequer da vida.