[E se o Barbeiro Surtar?]
[Só agora, próximo da morte, eu conto...]
O tal do culto judaico-cristão está entranhado até nas moléculas da gente! Como é difícil extrair da mente essa coisa, e como é difícil livrar-se dos traços de culpa e de medo característicos desse culto! Talvez seja necessário nascer de novo em regiões asiáticas... outras culturas! Mas eu reajo... quero-me adepto do culto ao deus grego Dioniso. Sim, acho-me mais próximo de Dioniso que de Apolo!
Antes de me converter aos deuses gregos, eu li a bíblia inteira, e uma das consequências dessa leitura é que eu tinha medo de ir ao barbeiro! Toda a vez que a minha mãe dizia: "Carlinhos, precisa ir cortar o cabelo!" — eu obedecia, mas, envergonhado, não confessava o meu medo!
Bastava eu olhar aquela navalha sendo afiada na tala de couro para fazer a barba de um freguês, e me lembrar da orelha do soldado cortada por Pedro, com um golpe de espada! [Sempre me perguntei: cortar só a orelha, e não a garganta do infeliz, por quê?! Até o milagre da cura ficaria mais dramático!].
Bem... e o meu medo? Eu pensava que o barbeiro bem podia ter um surto; podia num lance, encarnar Pedro, e pensar que eu era o tal do Malco [a vítima de Pedro], que estava por ali, espiando ele afiar a navalha... e pior: não haveria um cristo por perto para emendar a minha orelha! E o barbeiro podia não ser bonzinho como Pedro! O alívio mesmo era ver tudo terminado, ganhar a rua... inteiro, com a orelha no lugar!
O barbeiro nunca leu esse medo em meus olhos... ainda bem! E também, eu nunca contei a ninguém sobre aquele meu medo que fez passar a cortar o cabelo em casa, sozinho! Acho que o meu senso do ridículo está se desvanecendo...
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[Desterro, 29 de outubro de 2012]