[Tempo de Acerolas]

É noite. Caminho pela alameda mais externa do interior do Parque Vicentina Aranha, uma área de majestosas árvores e um conjunto de prédios da arquitetura sanatorial. São construções erguidas nos tempos em que as pessoas vinham ao Desterro em busca da cura da tuberculose. Nos dois lados dessa alameda, enfileiram-se pés acerola, viçosos, agradecidos por terem recebido as recentes chuvas. [Em tempo: há uns 5 ou 6 anos, o Parque, de 84.500 m², foi arrancado à sanha das mandíbulas da especulação imobiliária; o terreno é tão plano, tão plano que a chuva, não tendo como correr, apenas some na terra...].

Mas não é disso que eu quero falar! O que eu quero mesmo é relatar uma experiência estética seguida de um impulso ético, que eu tive enquanto caminhava. Sabe-se que uma região do nosso cérebro tem uma atividade intensa durante uma experiência sensorial [estética] — será que isto explica o que vou narrar a seguir?

Olho a extensa fieira de pés de acerola, e não resisto; aproximo-me de uma arvorezinha, e só a custo, contenho ânsia de tocar as suas folhas, acariciar a sua tenra verdura! Contemplo-a longamente... as pessoas param, olham-me curiosas, como houvesse algo de extraordinário no pé de acerola, algo que só eu vejo. Olho a copa da árvore, dou uma volta o seu redor, e torno a olhar — nada, nem uma acerola sequer, só folhas! Também, se não é tempo de acerolas... ah, talvez alguma temporã? Também não; nenhuma!

De repente, sinto uma vertigem — é outro ataque daqueles costumeiros, que eu chamo de “embuste neurológico” — algum impulso elétrico extraviado faz uma conexão errônea em meu cérebro. O “embuste”, conforme o dicionário Aulete, é — “armadilha, esparrela, situação armada intencionalmente para lograr alguém”. O meu, no entanto, é um embuste quase honesto, pois o primeiro a ser enganado sou eu mesmo!

Esse transe me transforma, leva-me a crer que eu nasci para salvar o mundo, que eu posso transformar água em vinho, caminhar sobre as águas e até ressuscitar mortos já em estado de decomposição! Esses transes são contagiosos; outros começam a ver o que eu vejo, e até bebem água pensando que é vinho mesmo!

Li em algum lugar que a Estética e a Ética são maneiras complementares de lidar com a realidade. Mas, numa experiência estética, “por natureza, a coisa admirada é provocativa”. Assim, da admiração que me encantava, passo à surda raiva moral... é tarde, tenho fome, mas esta árvore... Ah... vacilo... giram os meus sentidos... Mas agora, já totalmente desprovido do senso de ridículo [outra característica do embuste...], volto-me num rompante de autoridade moral, e exclamo para todos ouvirem:

— “Nunca mais nasça acerolas em ti!”

Coitada da arvorezinha, murchou, perdeu todas as folhas, secou! Mas isto, apenas na minha imaginação, e na de algumas pessoas, não sei dizer quantas... pois, enquanto eu me afastava vitorioso, contente por ter aplacado a minha insensata fúria, pelas minhas costas, a tal arvorezinha sorria e zombava de mim:

— “És doido mesmo... e pior: tens seguidores”!

Mas eu não a ouço, pois quem ouve os seres mortos, senão os loucos?! Ao passar pela portaria do Parque, eu avisei ao guarda o exato lugar onde agora há uma árvore morta, que precisa ser retirada... Expliquei que eu a amaldiçoei e matei por que não havia nenhuma acerola em seus galhos — um absurdo! — eu disse. O guarda sorriu para mim com ar piedoso, e pelo rádio, confirmou com o colega da ronda o que ele já sabia: não há nenhum pé de acerola morto no lugar indicado por mim!

Fui até o bebedouro e sorvi um longo gole de água gelada. Ouvi o ruído dos carros na rua em frente... a água gelada o barulho dos carros trouxeram-me a claridade do olhar... Enquanto tomava o rumo de casa, pude ouvir ainda:

— “Coitado... ele não sabe que não é tempo de acerolas, e os doidos sabem o quê, afinal?”

Mas agora, o único embuste que há é este de me julgar um poeta — o mundo deveria ser poupado de mim! Mas este embuste só diz respeito a mim: eu não quero tapear ninguém. Escrever é mais que uma sina, é um vício!

E para cumprir a minha sina [ou satisfazer o meu vício], tão logo cheguei a casa, pus-me a escrever estas notas poéticas...

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[Desterro, 27 de outubro de 2012]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 28/10/2012
Reeditado em 28/10/2012
Código do texto: T3957142
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