Josué de Mello e Silva
“Não há mais nada a esperar quando o vento me visita”. Josué sabia bem aquilo que escrevera, conhecia de por menor cada pedaço de sua emoção. Passava muitas horas na penitência da reflexão e era este o seu consumo. Era o alimento que o consumia. O miserável se entendia. O homem tinha paz, nem de tédio sofria. Mas, Josué tem culpa e isso basta; pela paz do vizinho, pela do mundo, pela sua e isso já é muita coisa. Na janela o seu mal se alastrava, ganhava substância, invadia outros corpos. Era a paz que o dominava. Era a sensação de gozo sem prazer, a coisa feia e insana. É um câncer que ele tem, um padecimento da emoção, é o “órgão” que adoeceu. O tecido do abstrato que se reproduziu desordenadamente. Mas, Josué sabe que merece o mal.
Outrora, Eno ainda conseguia perturbá-lo. Dias atrás, quando iniciou seu ritual diário de divisar da janela a dança de corpos, ainda prestava-se a dividir com o amigo as suas observações. Às vezes, o convidava a tentar imitar os movimentos estranhos que percebia, na tentativa de armazenar em duas cabeças o trajeto corporal dos transeuntes. Embora, tenha notado sem pesar que Eno tivesse certa antipatia por aquilo. Eno possuía poucos interesses e seus olhos farejadores viam naquilo loucura. Josué passou então a fotografar movimentos. Estendia-se pelo parapeito a fim de conseguir o melhor ângulo e até chegou a gritar para seu vizinho, que apressadamente caminhava com uma sacola repleta de limões, que ele não desse mais nenhum passo, permanecesse parado, ele iria fotografá-lo nesse momento de “esplendor”. O que seria do vizinho se Eno não tivesse interrompido? Em um idioma estranho, talvez um dialeto que Eno teimosamente falava, Josué compreendeu que tivera sido repreendido.
Talvez, a partir deste momento Josué tenha contraído com Eno e seu vizinho certa raiva. Quem sabe até cólera. Pensou mesmo em ir tomar satisfação com o homem do limão, que desde aquele momento, como se por natureza assustado fosse, permanecia imóvel em frente à casa de Josué. Com olhos fixos, Josué se prometerá ir lá, dizer algumas palavras torpes, rasgar aquela sacola, pisar nos limões, tomar limonada de limões pisados. Mas, contentou-se em enfrentar o seu vizinho diariamente, no olho a olho de sua janela, com a mesma força que este o perscrutava. Josué já não tinha, já faltava, as revoltas o deixara. O tecido maligno se multiplicara em exorbitância e Josué achou paz no olhar insistente do seu vizinho, que nesse momento era o único que o enfrentava. Josué achou importância naqueles olhos. E, esta é a sua culpa. A sua.
Eno sentirá a ausência de Josué. Sentia-se abandonado, nada estava em ordem, ele não tinha suas ordens, que tanto o confortavam. Pelo menos foi assim que da janela Josué passara a perceber o seu amigo e fazia isto por não aceitar injúrias. Como podia? Como, logo Eno que nascera naquela casa, abrigado desde sempre naquele ninho acolhedor, tratar com tanto desdém a coreografia citadina que nascia em sua janela? Era um infame. Josué tinha certeza. E não adiantava que ele aparecesse em sua beleza ingênua e alva, como quem pede a paz logo após anunciar a guerra. Eno nunca soube manter opiniões, na verdade pouco soube dizê-las, sempre recorria ao dialeto de merda, de sabe o Diabo onde, que ele costumava falar quando tinha medo e vergonha do que iria dizer. Eno não guardava rancor e para Josué isto era intragável.
Já com o órgão todo em dor, com todo o tecido podre, Josué continuara em paz mesmo quando o amigo cometeu seu último delito. Imagina? Eno que sempre fora tão calmo espalhara agora sua cor berrante pela casa. Tudo estava vermelho. Um carmim absoluto. E, Eno na calçada, na rua, já próximo ao vizinho dos limões. Parecia contorcido, sem fôlego, sem ar, como que consumido por toda sua ira e maldade. Em cada móvel, parede e pedaço de cerâmica havia também um pedaço do amigo, que havia se esfregado, batido, arranhando cada lugar. E, como que consumido pelo ódio arrastou para fora as grades de proteção do apartamento. Havia muito ódio naquele coração pensou Josué. Talvez Eno não fosse assim tão carente de rancores, juntou tudo aos pouquinhos para soltá-los no momento certo e foi assim que fez, só a força de um homem para arrancar aquelas grades e onde o amigo arranjará tudo aquilo? Com certeza do seu coração febril e doente. Josué admirou a capacidade de silêncio que Eno sempre mantivera, para fazer o bem e agora também para o mal. Cometeu todo o ato na surdina. Josué só percebera pelo último latido que deu, única vez que falará corretamente, numa língua compreensível.
Rapidamente Josué se esquecera de Eno, ou melhor, seria dizer que tão pouco lembrou. Estava submerso no olhar dos limões, e talvez nem tenha percebido que o seu vizinho agora recoberto por uma lona preta e cercado por fitas vivas de um assustador amarelo, desta que se põe em incêndio para afastar curiosos, ostentava uma placa, que certamente informava um estado de espírito, “EM RESTAURO”. Josué, paralisado e com todo o âmago tomado pela doença que se espalhara pondo fim as suas tristezas, se um dia ele as teve, olhava inerte o movimento, e até ouvia a música que cadenciava cada passagem, cada transformação. Josué agora dançava com o vento e passou a esperá-lo como uma visita ilustre a quais poucos têm oportunidade. E, em paz escreveu “não há mais nada a esperar quando o vento me visita”. Josué é tão culpado. Pela paz do vizinho, pela sua, pela do mundo. Para a sua, a sua culpa de quem não olha janelas.