A CHARRUA ABANDONADA
(PR.P/14)
Lá estava ela. Num canto sob um pé de ipê roxo não muito aparente, e enferrujada, perscrutava a vida querendo sentir-se útil, quiçá, à espera do dono das terras das manhãs geladas, da parelha dos bois de pelo ocre-rosado sob a canga ondulada e pesada de madeira maciça, juntinhos, a esboçar um olhar triste em tons de céu azul claro-escuro entremeando com o branco, trancado, engolido e mastigado, à dizer das condições de seus longos dias sempre iguais e desgastados pela labuta imposta da dura vida a puxar, em desnível de posição, a charrua no sulco em retidão, cravando seu membro ferroso tosco na terra, revirando-a, para o novo plantio garantir o alimento à família do seu senhor que a fazia cumprir os ensinamentos ancestrais do aprendizado em longas datas idas, cujo lavrador das terras e de sangue humilde, forte, Siciliano da Ilha mesmo fatigado, franzino, suor escorrendo pelo belo rosto, de olhar transparente, manejava-a em espetacular grandeza e destreza que lhe obedecia no comando da força de seus braços queimados pelo sol, com marcas do tempo; a frente, os bois, em passos lentos arando a terra guiados pelas rédeas em volta do seu pescoço podendo dirigir todo esse aparato de ferro e madeira, acoplado uma roda cortante e asas de madeira, corpo esquelético e desengonçado, além da força e bravura da terna obediência dos animais para com o homem. Cada sulco arado era a glória nas horas de um tempo e, parar consistia em abastecer o coração e o corpo para equilibrar e driblar a jornada que exaustiva sempre se tornava.
Sutilmente, o joão-de-barro, pousado nos braços da charrua, trocava carinhos com o seu bico nos braços do arado, cantava e dialogava confortava-a porque ela lhe era útil e ponto referencial diário. Era dali que ele investigava o local do material, a busca da laboriosa massa para a fabricação da sua casa; do seu entorno ciscava a palha seca e partia também à luta; sentia-se seguro longe de quaisquer predadores atentos aos desatentos. Algumas flores silvestres crescidas e floridas também lhe faziam companhia, permanente na estação primaveril, embelezando e aromatizando a cadeira de balanço, quebrada, dos seus dias e tempo estagnados, porque dela não conseguiria mais descer, mas, podia dar vida a uma tela branca e representar a arte de Deus e do homem percorrendo os museus do mundo.
De cima, ela podia observar o pequeno córrego, na beira da estrada, que continuava o percurso sinuoso, contínuo... e de melancolia o seu canteiro se impregnou. João-de-barro também partiu... Ela sentiu-se ainda mais imprestável e só; dia após dia, solitária, encalhada e obsoleta definha no local, ainda, à espera do seu senhor que partiu... no mesmo dia em que lá ele a deixou descansar sem saber que ele partiria. Oxidada, ficou sem saber quão importante e útil, lhe fora.