PÁSSAROS DE OCASIÃO

O torvelinho dos dias soma sessenta e seis anos e é quase nada para o espiritual. O corpo sofre dores no torpor imensurável de se saber envelhecendo. O aniversário mostra a sua face impura, imperfeita – como se algo no viver fosse perfeito ou pudesse conter certa perfectibilidade... Saio à rua num dia em que o sol convida a olhar o azul do céu. Uma claridade adentra aos olhos lentamente, flor dentro nas retinas. Caminho, e vejo ao lado os parceiros de estrada. Estamos todos buscando o dia seguinte com menos dores, músculos distendidos segundo a pressa. Aquieta-se o coração a curtos passos, respirando o azul, estupefato em direção ao objetivo à frente: a estrada de asfalto, que mais parece um rio de negras águas. Mergulhado no aparente nada, o corredor longo de árvores é um indício de que estamos no caminho de buscas e possíveis descobertas. E as ideias morrem no mesmo monólogo de lembranças. Sempre há um amanhã quando ainda bebemos ou podemos beber os próprios sonhos e o das parcerias de estado ou de ocasião. À volta, os pássaros no azul celeste, ao rés-do-chão os anjos vigilantes bebericam nas poças d’água. Iluminam-se ao sol dos dias e suas cores têm o barro das vivências como delimitação do amanhã. O sal dentro das veias cumpre sua função energética. O açúcar alimenta a musculação. O espiritual dá-nos ânsias de viver num sopro continuado. E o silêncio contamina a voz junto ao ninho próximo ao leito da estrada. É nua e crua a reflexão, sem arrebatamentos. Descrevo-me rumo aos dias entre e sob a sombra dos ciprestes do amanhã. O desafio é que os digitais de palavra e atos congeminem assombros e esperanças, alados tal os pássaros, porém sem demasiada pressa. Uma carreta passa ao alcance dos olhos, gemendo sua vagarosa natureza. Nela está inscrito um coração em vermelho, e dentro, fixado em verde esperança, a palavra “Felicidade”. A todo o tempo temos algo a dizer. Somos pássaros de ocasião sempre que a palavra conforma-se no gesto gráfico. Tal como agora, em que o sopro da Onipotência cochicha algo que me parece providencial e lúcido. Feliz Aniversário!

– Do livro O AMAR É FÓSFORO, 2012.

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