Stop! A vida parou para recomeçar?

Eu lavo as mãos e meu rosto para ficar acordado. Olho para o espelho e vejo duas bolsas roxas penduradas nos meus olhos, ajeito meu cabelo grisalho e fito meus próprios olhos, encarando aquele mar morto de lembranças. Está nublado lá fora, meu café está fumegante e amargo. Lembro do que costumo fazer nessa época do ano e me sinto um animal, pois é a temporada em que me escondo, totalmente alheio de todos. É o tempo em que os ossos estão congelados, as ruas lameadas, durante o dia a cidade vazia e em raros momentos uns guarda-chuvas circulam. Momento de fugir pra caverna do meu ser, atualizar minha agenda de pendências, lotada de indicações de leituras, nome de lugares e pessoas. Reler minhas anotações, textos que escrevi, comprar livros novos e velhos, escrever, desenhar algumas bobagens, mudar meu quarto, um ar de renovação limpando lembretes e papéis que passaram da validade, com datas há muito ignoradas pela minha rotina alucinante, organizar toda a bagunça. Desisto na metade do serviço e limpo tudo, pois logo dou por obsoleto junto com minha paciência. Penso com meus botões. Me arrependo, me encontro, me conheço, me odeio, paro. Reflexão vã.

Vou na igreja, converso com pessoas que me conhecem desde criança e agradeço o milagre de me sobressair mais um dia. Logo relembro o motivo de quase nunca passar por aqui. As mazelas do mundo são deixadas de lado, quando vemos todos aqueles santos e a imagem do sofrimento na cruz por nós todos. Acabamos por nos desculpar pelos nossos pecados e relembrar nossas boa ações. Damos as costas para o bem do irmão e garantimos um "nosso" repugnante. Pensamos que tudo está absolvido com alguns trocados e repetições de rezas, com aceitações de regras. Sinceramente, espero que o céu seja parecido com tudo, menos com uma igreja. Pego meu chapéu e saiu envergonhado como uma criança, porque meus pensamentos são os mesmos até hoje.

Volto para meu apartamento. Pesquiso sobre assuntos de meu interesse, planejo viagens, vou ver um amigo antigo. Da janela passo horas à fio observando o movimento da madrugada e sinto solidão. Uma solidão tão vazia, ao mesmo tempo tão cheia de tudo, que se torna uma comunhão silenciosa com a vida e o mundo.

Com alguns dias a mais, passo a me maltratar. Deixo o dia mais tedioso, sinto saudade do calor de gente. Tudo passa a ter um ar mais inerte, mais cinza e o frio já me agoniza. Sinto a falta do meu amor atrasando as horas, me deixando impaciente e minhas noites em claro. A brisa gélida trazendo a carência do seu corpo e do seu sorriso. Às quatro horas vou comprar algo que ainda não sei bem o que é.

De repente volto em casa, arrumo minhas coisas, corto o cabelo, faço a barba como se estivesse no automático, como se meu corpo precisasse fazer tudo isso. Pego o carro, bate um nervosismo, a barriga esquenta e deixa o resto frio, a boca seca. Estou confuso comigo mesmo, o que está acontecendo? Mas no fundo sei do que eu preciso tanto quanto ao ar.

Bato na porta, meu bem me atende, lhe entrego lírios e surge uma trilha sonora na minha cabeça. Ela vem me beijar com olhos já fechados, com sorriso acanhado. Com a boca encostada na minha, sinto o seu sussurro adivinho, puxando a música:

"O meu manso amor tem um jeito louco que é só seu (...)".

E me beija a boca que te deixa louca. Tudo esquenta, tudo colore, estou de volta e a vida está mesmo turbilhão de antes. Agora eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim. Assim seja.

Obs: a música é O Meu Amor e seu trecho correto seria "O meu amor tem um jeito manso que é só seu" porém, o personagem decidiu cantar do seu jeitinho.

Ak
Enviado por Ak em 19/09/2012
Reeditado em 29/01/2013
Código do texto: T3890940
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