Um motivo tão bom quanto outro qualquer
Pensei que enlouqueceria quando elas surgiram. Eu teria que:
1. aprender a cuidar de algo nem sempre ao alcance das mãos;
2. lidar com seu irritante hábito de, repentinamente, se expandir, expondo-as e a mim (um constrangimento, de fato, pois denotava meu inexistente controle sobre elas);
3. ponderar seu maravilhante e súbito modo de se mostrar espendorosamente (ainda que ocupando o espaço antes só meu - mesmo que me roubando o ar), pois que ninguém mais possuía coisa igual;
4. aprender (rápido, rápido!) muito de aerodinâmica - e Física, na juventude, já me causara suores frios; e
5. perder o medo de altura (ah, os suores gelados!!!).
Tentei enganá-las e rastejei por uns tempos. Os bichos e plantas que encontrei pelo rés do chão, uns comi; noutros, pisei, com ou sem intenção. Mas a fome apenas aumentava (o paladar agora apurado) e a frustração crescia meu peso de tal forma que as alminhas dos seres digeridos ou esmagados me visitavam no sono solto e escuro da madrugada e - até - em breves cochilos prismáticos (aí, eu sempre lhes pedia perdão, tanto por eles quanto por mim.)
Pensei que enlouqueceria...
Pensei tanta coisa! Elas eram impetuosas, quase arruaceiras; não eram adequadas para mim. Elas não me atendiam, então, não me pertenciam. Vieram na hora errada, pelo motivo errado; não eram para mim. Eu não as entendia, não as sabia... eu não servia para elas. Era isso. Ponto.
('Ponto e vírgula' coube melhor!)
Quase perdi o juízo enquanto convivia com elas - mas não houve jeito senão conviver...
E a cada incidente fui percebendo que não só elas se ampliavam mais e mais: eu, também, nelas me alçava - e, de fato, já as esperava. Até o dia em que antecipei nossa ambivalente exposição... Após tal iniciativa - inconsciente, talvez; responsável, decerto - nada mais foi acidental ou escondido; a partir daí carreguei-as orgulhosa, envaidecida e luxuriosamente - como um pavão mostra a cauda a fêmeas e competidores, como Pessoa viajando com suas distintas e aprendizes e completantes personalidades.
Aceitei-as e comecei a aprende-las - as mesmas que chegaram em hora imprópria, elas, de quem eu não me considerava digna - e que continuavam a me enlouquecer!
Um dia descobri que, originalmente, apenas uma era minha: a outra havia sido descartada por alguém. Lembrei de como tudo acontecera; refleti bastante sobre as escolhas que uma pessoa pode fazer e me perguntei se a mim havia sido dada a mesma chance. 'Não, mesmo!', percebi (e não gostaria disso, no entanto.)
A de outrem veio triste pelo desprezo (de não ser querida eu entendo); a minha chegou toda dançante! (de amor sei, também...). As duas criaram um encanto ímpar. (Não sei criar mistérios, não, mas - mesmo que demore - reconheço um dos bons, quando o encontro).
Foi afinal que entendi a razão de me haver surgido um par: eu podia aguentar. Eu podia (melhor, ainda!) a-pro-vei-tar... e me esbaldar! (E - só talvez - cumprir meu destino...)
As asas aprenderam sobre aceitação e alegria, e tudo sobre mim; depois, se foram - não da forma atabalhoada como chegaram, mas somente após me ensinarem a voar (pois é, perdi o medo de altura).
Pensei que enlouqueceria quando fiquei sem elas.
Também por isso escrevo.