Renascer
Não há mais portas que nos levem para uma outra rua, para uma estrada inédita, para um universo diferente; não há mais outra porta em que a palavra nos gere inefáveis sensações arrebatadoras. As pessoas estavam caminhando na rua, celulares eram mais sonoros do que os corações mortos de seus donos, e eu caminhava entre estes semimortos, com minha pasta na mão, documentos na pasta, responsabilidades sociais e familiares em cada poro de meu corpo, então parei: meus pés recusavam-se andar nem mais um palmo. As pessoas continuam caminhando, entrando em ônibus, saindo de carros, e os semáforos gritavam que não tínhamos um minuto a perder, um minuto a perder... Nem um instante... O céu acima de minha cabeça sangrava gotas de tempos perdidos, de amigos perdidos, de ideias perdidas, de escolhas perdidas, de familiares que nos abandonam, tudo vai nos abandonando lentamente, na verdade, muito mais velozmente do que queiramos acreditar e admitir, mas a vida nos ordena categoricamente a viver, não importa se não haja sentido em nada, não importa que a própria vida perda seu alento nas mãos da morte, e que tudo gravite em torno de distintos nadas divinizados e mercantilizados, viver é uma ultimato imprescindível. As coisas, as pessoas, o mundo, a vida, tudo evidencia estar intrinsecamente empoeirado, sujo, corrompido, em estados de narcolepsias, de regressões pandêmicas, de idiotismo profundo, de decadência avassaladora em tudo o que os olhos tocam, no que os ouvidos enxergam, no que as mãos cheiram, no que o olfato interpreta. Deus... Deus, o que fazer? “Ame”; “estude”; “respeite”; “pense”; “trabalhe”; “seja maior”; “leia”; “não faça isso”; “seja dessa forma”; “abrace alguma ideologia”; Céus meu! Que venha um novo anjo nos trazer um novo livro sagrado com novas tábuas e rituais para esta vida doente, para estas pessoas doentes, para este mundo doente que mascara suas patologias e psicoses. Não vês? Não consegues ver as tempestades de poeira e estercos pragmáticos que esbofeteiam teus olhos com tantas ilusões e mediocridades disfarçadas?
Eu senti que tudo estava errado, eu me senti tão errado, eu senti que tudo ali, acolá, tudo, absolutamente tudo fluía de forma errado, tanto biológico, histórico e existencialmente tudo estava errado, deturpado, antropomorfizado, mas infelizmente o Onipresente Erro era o que permitia a fertilidade do mundo, as conexões entre átomos, moléculas e vivências, porque era preciso, era necessário, era inevitável. Eu olhei para as pessoas, suas faces, suas pressas, seus sonhos, suas almas despidas diante do meu coração, e rasguei minhas roupas, pus-me a gritar, a bradar tantas e tantas palavras que por instante alguns pararam para ouvir meus disparates, minha verborragia aparentemente ilógica, pois uma vela disparou como uma pistola semiautomática uma chama distinta dentro de minha alma, e me senti finalmente vivo, desperto, renascido, lúcido, pronto para cuspir nos olhos da vida, disposto e bem concentrado para zombar dos deuses, forte para estrangular a hipocrisia do destino, dos conceitos, livre para defecar em todos os infernos e paraísos a minha liberdade predeterminada e envenenada. Ninguém entendia o que eu discorria, ninguém compreendia o que minhas palavras exprimiam com seus lábios mais concretos do que minha boca.
Para onde ir depois deste meu renascimento? Não posso voltar para este mundo assassinado pela normalidade, pela lógica e pela racionalidade tão insanas. Não, eu não posso, será que vocês não podem compreender que meu espírito renasceu das chamas de minhas angústias, e que agora eu compreendi que eu sou a dor de minha dor?! Que sou a alegria dos meus risos; que sou o penhasco dos meus abismos?! Que não sou nem escravo e nem livre; que eu sou o ápice dos paradoxos consensuais do universo, e que as estradas que não há no mundo estão dentro da minha alma?!!!
Vocês não conseguem me entender? Tudo bem, porque é melhor não ser compreendido do que ser compreendido incorretamente e equivocadamente. Para onde irei? É meu segredo. Serei feliz lá? Minha montanha não necessita ser regada por ideias e sensações de felicidade ou infelicidade. Sigam em vossos caminhos corretos e ofuscados de luzes e exatidões dúbias.
Há um novo oceano que clama por meu nome, por meu corpo, por minha mente, e Eu Sou este incomensurável oceano psico-galáctico que se dilata cada vez mais neste tabernáculo pequeno, porém infinito, o qual é o meu ser. Enfim estavam quebrados os grilhões do não-ser, do pensar, da moral, do autoengano, e os labirintos sinuosos da Consciência dentro do meu âmago.
Gilliard Alves Rodrigues