Cantigas....para chorar
CANTIGAS ... PARA CHORAR!
Este texto é um grito de alerta e ao mesmo tempo uma homenagem a tantas
Marias-meninas que, entre quatro paredes, são vítimas silenciosas da
Violência doméstica.
Mansamente, a madrugada desvencilha-se
Do negro véu da noite.
O sono agitado, inquieto, noite mal dormida.
No nascente, absoluto, reina o astro sol.
O latido do cão, o cantar do galo anuncia um novo dia.
Doído viver, apesar do tão pouco vivido.
Que criança fui, que de quase nada lembrar consigo?
O inconsciente apagou tudo.
Minhas míseras alegrias destruiu.
Levou consigo meus anjos e demônios.
No espelho embaçado da vida
o reflexo da criança magrinha.
Lágrimas a escorrer pelo rosto empoeirado,
Como riachos perenes atravessando vales.
Falta de calor de colo, de bonecas de pano,
Aconhego, paz, brinquedos.
Cantigas de ninar.
Pânico ao ouvir ecos de pesadas passadas.
Fugir! Correr! Mas para onde?
Náuseas ao ouvir os berros,
Que embora ignorasse o significado,
Soavam humilhantes, ameçadores.
Ah, se pudesse tapar os ouvidos...
Espancamentos sem razão. Justificas, há?
Bofetões que faziam-me ver estrelas,
Disformes, espinhosas, pontudas, rombudas, pungentes.
Gargalhar irônico, sádico.
Descarrego de ira, ódio, revolta.
Frustrações de homem, pretensamente maduro.
“Exemplar” pai de família a cuidar da prole.
Quanta ironia!!!
Pancadas. Sangue infantil espirrando até o teto.
Escorrendo pelo rosto, quente, como a água do chuveiro em dias de inverno.
Escuridão... Ma ainda era meio dia?
Abandono. Desprezo.
Por que Deus não me livrava daquele inferno?
Ah, eu deveria ser tão insignificante que
Ele de mim nem se lembrava, com certeza.
Inútil e mirrada garotinha, Sem serventia.
Doente, chorona, carente, com dificuldade de
Engolir o escasso alimento, insosso.
E eu que muda era.
A cada dia mais calada me tornava.
No fundo d’alma, a revolta se acumulava.
Os irmãos mais velhos já estavam na escola.
Desenhavam sinais,letras, símbolos.
Juntando-os, formavam palavras,frases.
Mágica que me fascinava.
Atenta viajava naquelas narrativas de outras paragens.
Transpondo-me para além daquelas paredes sujas,
Corroídas pelo tempo e falta de cuidados.
Maravilhada, sorvia cada umas daquelas frases
Que fluíam como águas cristalinas,
Riacho sem pedras, sem curvas, lavando a alma.
Não me cansava de escutar a história de Lili, Lalau e o Lobo.
O Bonequinha Doce, que me fazia chorar.
A Bonequinha Preta... aquela danada!
Mas, nunca esquecerei a revolta
Por todas aquelas látegas - que quase diariamente,
no meu corpo imprimiam vergões doloridos.
No tronco, pernas, na alma, nos braços sem carne.
Assustada, percebi que as lágrimas secaram.
Tanta violência. Gratuita. Por quê?
SEI NÃO!!!!!
Tantos anos se passaram...
No corpo e na alma marcas indeléveis ficaram.
Contestadora na adolescência,
Ganhei de presente o sereno, a solidão das ruas.
Escrava livre de correntes e torturas,
Sem saber o que fazer com a liberdade.
Quanto solidariedade encontrei fora daquelas paredes.
Noites a estudar . Disposição para ensinar;
Ânsia de aprender, vontade ferrenha de vencer!
Busca desesperada por parâmetros
Que me dessem condições de sobreviver,
Sem jamais perder a ética, abrir mão da minha integridade
Como ser humano, como cidadã.
Ainda hoje, cada vez que mãos deslizam pela minha cabeça
E, desprevenidamente,tocam as cicatrizes que carrego,
A sensação do sangue quente a escorrer pela minha face, reaparece.
O dia de novo escurece.
Estrelas cintilantes, a gargalhar, aproveitam a escuridão
E, insistentes, voltam a brilhar,por instantes.
Para onde foram parar as fadas e as bruxas
que seduziam alma,
Armazenaram dores?
Desmontou-se o cenário.
Fechou-se a cortina.
“Hoje sou viajante de outras paragens.
É outro o meu cantar.
Magnetiza meu ser, Senhor!
Faz de mim uma heroína, violonista, pianista,
Repentista ou poetisa.
Representa-me no pentagrama
Ou, simplesmente, transmuda a minha dor.’