[O Público Escriba]
[Kafka, Kafka aonde anda essa tua verve sinistra?! Deus não passa pelas Públicas Repartições do Terceiro Mundo!]
Aquele senhor tinha uma estatura incomum para a gente de descendência japonesa - forte, ele devia ter quase dois metros de altura! Eu já o havia visto ali, na "Repartição", sofrendo os abusos, como eu... Será que a proverbial serenidade dos orientais [e seus descendentes] o ajudava a suportar os abusos melhor que eu?... Não sei... Mas, naquele dia, ele extravasou: agitava os enormes braços, mostrava o documento literalmente arrancado da "repartição", saiu dançando e gritando até a rua...
Naquele tempo, exigia-se que todo o documento fosse datilografado. Para vingar-me "deles", dos funcionários que se autodenominavam "prepostos", eu leva uma máquina portátil, colocava-a numa tábua, e organizava a fila... eu preenchia, na cara estupefata dos "prepostos", os documentos de todos os coitados que apareciam por lá! "Quanto é moço?" E eu: "Nada não... em nome da cidadania!" Agradeciam... "abençoado seja, moço!"
E lá fica eu, datilografando documentos até me cansar... e levar a maquinha salvadora para o porta-malas do carro!
A cena que eu narro, se passou há alguns anos na Ciretran daqui do Desterro... Mas ainda hoje, penso que aconteceria em qualquer desgraça de "Repartição"...
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Diante do público escriba, prosterna-se o escorreito cidadão. Enquanto o seu processo é manuseado pelos ágeis dedos do público escriba, sua voz é trêmula, balbucia respostas, seus modos são incertos, temerosos.
Hesitante, teme represálias a gestos mínimos — se o nervosismo transpirar em excesso, um mês a mais no andamento;
se a impaciência estralar os ossos da mão — mais dois meses de retardo;
se a irritação levantar as sobrancelhas — serão mais três meses;
se suspirar de justa impaciência — tome lá seis meses em vez de três!
Mas, se levantar a voz em ira, aí, é que será para nunca — “Agora”, fuzila o público escriba — “recorra à Justiça!” E então, serão cinco, dez, quinze anos de engavetamento, e, ao fim, com todas as multas cabíveis...
Mas esta vitima conteve-se; teve sucesso: já na rua, longe das garras agora inertes do público escriba, o cidadão dança e grita com documento na mão: “Vitória, vitória! Eu consegui, eu consegui! E sem intermediários!”
Lá dentro da Pública Repartição, o público escriba alisa entre os dedos um chaveiro feito de chocalho de cascavel, e em silêncio, rilha nos dentes a vingança: “tamanha insolência não ficará impune; será cobrada no lombo do próximo da fila!”
— “O próximo!” — sibila no ar o grito... mal sabe o que a espera esta humilde senhora, lavadeira com pano de saco de sal a conter-lhe os cabelos brancos de tantas penas, tantas penas...
[Depois disso, eu tinha uma resposta para um certa pergunta que ouvi... “onde fica o...” — Ara! O olho do cu do mundo fica numa odienta Pública Repartição do Terceiro Mundo]
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[Penas do Desterro, 01 de julho de 2003]