Antes de Morrer

Foi somente no último suspiro que percebi não o silêncio da morte chegando, mas sim, o desespero de ver a vida partindo de mim... E foi assim que se encerrou uma vida de aventuras e desgraças, de amores e tristeza, como a de tantas pessoas por aí... Sou e fui apenas mais um sem importância ou sentido nesse lugar... Não fiz e nem vou fazer a mínima diferença, não há quem vai chorar, nem mesmo a se lamentar a falta que poderia fazer...

Será que haverá juízo final? Finalmente vou poder apertar a mão de Deus? Terei que prestar contas de tudo o que fiz? Até mesmo quando me expressei mal? Pensamentos maldosos entram no julgamento? Quem será meu advogado ou terei um promotor público celeste para me auxiliar? Ah, céus... Essas horas que não passam... Faz vinte horas que olhei o relógio e só se passaram vinte minutos... Ainda não há nada acontecendo... Nem consigo sentir nada, a não ser um extenso vazio... Agora sim, meu último suspiro...

Lembro ainda da minha infância... Infância tem um cheiro engraçado...A minha infância tem cheiro de pó, algumas flores, mato, chuva... Tem cheiro de tinta, de cola, papel velho... Gostava de papel de revista velho... Sempre manchava a mão... Minha infância passou muito rápida, apesar de ter a nítida impressão de que os dias passavam mais devagar... A tarde durava uma eternidade e sempre conseguia fazer um monte de coisa e ainda ter tempo para me entediar... Foi daí que surgiu o bets com cabos de vassoura e garrafas pet e tênis com bolinhas de desodorante roll-on... Os bolos eram sempre motivos de guerras e de brigas infindáveis por conta da panela... Sempre queríamos raspar a panela do bolo... Era mais gostosa a massa crua do que o bolo em si... Que me perdoe a mamãe...

Mamãe... Ela tinha um cheiro de segurança... O abraço dela tinha o poder de curar todas as dores e o assopro no machucado tinha o dom de fazer o Mertiolate parar de arder... Papai era tão alto e imponente... Sempre tinha uma expressão séria, mas era minha maior alegria o ver sorrindo... Tinha um belo sorriso por detrás daquela barba por fazer...

Agora é a hora da morte...

Lembro de quando olhei pela janela e vi o mundo diferente... Meu corpo mudou, o mundo mudou... As coisas não estavam mais no eixo que elas estavam antes e nada mais fazia sentido algum... Tudo que eu tinha era um ódio muito grande e uma vontade de dizer não todo o tempo... Queria simplesmente desaparecer, sumir... Bem vinda adolescência e toda sua razão de ser...

Era a minha hora de ter mais uma chance...

Perdi pessoas que amei, amei pessoas que perdi, perdi amor nas pessoas... E assim se foram, um por um amores que ficaram eternos no meu coração... Chegaram, alegraram, doeram, machucaram, se foram, cicatrizaram, marcaram e sumiram... Hoje percebo que, realmente não passou em branco, muitas cicatrizes foram tão profundas que nem mesmo um bom cirurgião poderiam apagar...

Nem... Mesmo assim, prossegui, sempre em frente não importava o quanto doesse... Sempre fingia que estava tudo bem, quando na realidade a minha vontade era de me matar, de morrer... Agora que se cumpre minha vontade, queria ter um tempo mais...

Um tempo mais para poder perdoar, para poder pedir desculpas, para poder dizer que me importo para dizer chega, dizer não, dizer sim... Olhar nos olhos quando dissesse “te amo”, entender quando alguém diz “pára, assim dói!”, não resistir quando deveria ser forte, chorar quando sentisse vontade, até cair os pulmões pela cara, correr até perder o fôlego, amar, mesmo que doesse o coração...

Mas não, agora não posso mais...

Esse é meu último suspiro... Lá se foi minha última chance...

Sinto tão breve tremor em meu peito, o acabar do pulso, do bater de meu coração... O lamento escorrendo pelo canto de meus olhos pelos filhos que não tive, pelo ardor que nunca pude proporcionar, por algo verdadeiro...

Não sei como será de agora em diante, sei apenas de pequenas dúvidas e incertezas perante o que é desconhecido, perante o que não posso controlar... O inferno parece ser o mar de dúvidas que me assola... Não saber o que esperar, o que saber, o que pensar ou em como respirar me faz sentir enjoo diante das mesmices... Poderia rezar, mas não sou acostumado... Poderia xingar, esbravejar, praguejar... Mas, não há mais nada, a não ser esse imenso vazio...

Minha consciência jaz, enterrada, interditada, inconsciente... Já nem sinto meu corpo, minhas saliências, meus desejos, minhas vitórias, minhas derrotas... As esperanças que não tive, os amores que deixei, as vidas que poderia ter tido, os orgulhos que brindei... Nada perdi, nada ganhei... Deixo essa vida com a certeza de que matei todas as alegrias que poderia... Ter... Ser...

Teria eu existido, antes de morrer?

Kelli Rodrigues
Enviado por Kelli Rodrigues em 17/07/2012
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