Anoitecer...

Tarde da noite, de uma noite de solidão, onde a noite atravessava vazia, rua afora, escuridão...

A noite vagava, vagarosa, passeava pelos belos montes adentro e se afogava em lágrimas de saudades e lembranças, no vazio e apenas no vazio do que restou de um coração...

Nada mais... Nada mais, caro amigo, resta além de papéis e lágrimas, uma xícara vazia de café, fumaça de cigarro e Chico Buarque... Resta apenas um coração... Cinzas de coração e pó de dignidade, apenas pó...

Em delírios lancinantes, fontes desejantes, faces sedentas desta fonte seca de amor...

Nada mais resta... Frio da madrugada, aurora boreal, pesado e impossível amanhecer...

Passo pela noite com passo de formiga, marcha de tartaruga da eternidade...

Frio... Frio... Apenas frio...

Não se preocupe, distinto moço gentil... Não se consuma em remorsos e vergonha, não vale a pena tamanha hipocrisia... É na escuridão que tem alento meu desprezível coração... Não me sobra muito além de vazio e solidão...

É tarde, meu bem, é tarde... Deixa seu coração acalmar... Não te vale a preocupação...

Nada mais importa, nada além de fascínios dilacerantes, olhos entristecidos e sentimentos machucados pela saudade...

A rejeição também é um fardo... Também é um fardo, meu querido... Ainda hei de escutar, impiedosa, seu último gemido...

Ainda é tarde, tarde da noite...Ainda não amanheceu, nem há de amanhecer... É a certeza dessa prisão que me faz enlouquecer...

Nada mais resta, nada mais...ninguém mais...

É triste olhar os olhos por entre facadas da indiferença, é como estar face a face com seu algoz, com o carrasco que lhe tirará a vida, se comprazendo com a tortura e o desespero da vida que te foge aos olhos...

É triste enlouquecer, é triste anoitecer... É triste não sentir o toque macio de suas mãos, só sentir o anoitecer e anoitece, sem sombra de dúvidas, o meu coração...

Não vou me revelar, não vou me expor e nem me mostrar...

A falta quente de teus beijos congelou meu rosto... Não quero que me vejam... Logo eu, face real do desgosto... Sua frieza cruel dilacerou minha pele, rasgando minha alma... Não quero que me vejam anoitecer... Jamais...

Não tem porque ver meu rosto, criticar meu preto cabelo, nem minhas pretas roupas, nem o preto na pintura dos meus olhos... Não quero que me vejam anoitecer...

Não tem mais onde... Mesmo durante o dia, eu vou anoitecer... A noite se faz presente em mim, aqui... Em todo lugar...

Sou eu a anoitecer, meu bem... Sou eu a anoitecer... Poderia amanhecer na Terra dois Sóis, ainda assim, eu estaria a anoitecer...

Faz frio na indiferença do seu olhar, e foi nesse frio que a minha vida entardeceu e foi na certeza do não, que tudo se tatuou negro, como ao anoitecer... Aquele que você não entende...

Não me diga: “não seja assim”, não me console com palavras quentes pensando que me traz algum conforto... Faça o que tem de fazer, me diga não, me abrace calorosamente e feche a porta do seu quarto quando eu sair...não tente, meu caro, o que tão desastrosamente destroçou, não... Não me abrace...não sorria para mim... Não me oferte beijos ardentes, olhares de desejo... Não fale comigo em tom suave e nem me toque com suas mãos macias...

Não me dê seu coração, porque eu não quero mais amanhecer...

Foi sua indiferença que tingiu tudo de preto ao meu redor, num eterno luto de meu coração...Sou viúva de mim mesma... Você pintou tudo com solidão e saudade... Apague a luz... Assim vai lembrar melhor de mim...

Não me devolva essa aliança...Ela não entra mais no meu dedo...quero viver na solidão...

Não me dê seu coração, porque eu não quero mais amanhecer...

É profunda a escuridão e é nela que me encontro... É na noite que as coisas se revelam... É sempre nela que aparecem os melhores vícios, é no escuro que tudo fica as claras...

Não há nada, não há...há lembranças que esperam definição... Há algo vago, sempre algo a se criar...nem tudo é vida, nem tudo é morte,nem tudo é ruim...

É sempre dúvidas e não mais certezas...é tudo indefinição...

Não, meu querido, te digo não...eu não caio mais nessa não... Leva para longe de mim seus lindos olhos azuis, sua gentileza sutil, sua fingida preocupação... Atire-se para longe de mim...

Não me dê seu coração, porque eu não quero amanhecer...

Kelli Rodrigues
Enviado por Kelli Rodrigues em 16/07/2012
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