Mais forte, e mais forte...
Ligava o chuveiro quente de mais, e ficava tempo de mais lavando o cabelo. Deixava a água correr pelas costas como se pudesse arrancar cada lembrança de seu corpo. Lia o rótulo de shampoo, e desenhava no vapor d’água. Se olhava pelos desenhos que fazia com os dedos, os nomes que havia escrito... E se dava conta de que todas aquelas lembranças não escorreram pro ralo. Apagava todos os escritos e desenhos feitos no espelho num ato desesperado de apagá-los de sua memória. De nada adiantava, pois o espelho refletia novamente o seu rosto, e em cada traço de seu corpo estava escrito nossa história. Não se podia mais distinguir o que eram lágrimas e o que eram gotas de água. Caia no chão frio, desmoronando. Branca como uma vela, derretia até de desfazer em solidão. Só, em sua alma. Levantava-se no meio daquela poça que havia feito, e percebia que não seria o suficiente pra se afogar. Enxugava o chão como se pudesse estancar todas as lágrimas que foram derramadas em todos os anos... Mas não podia. Não era suficiente pra matá-la. Era pior, pois bastava para torturá-la. Enxugava, como se pudesse arrancar as memórias. Como se pudesse apagar cada palavra dita. Aumentava a música, de novo, e de novo. Aumentava a quantidade de vezes que repassava a música. E cantava cada vez mais alto. Enquanto pulava cada vez mais alto. Como se pudesse voar e escapar de tudo aquilo. Gritava, e cada vez mais odiava cada palavra que estava dizendo. Odiava aquela batida, e o que ela a lembrava. Gritava mais e mais alto, e quando se dava conta não estava mais nem ouvindo a música. Estava lá, apertando a cabeça no travesseiro. Socando as paredes como se tivesse força pra lutar contra tudo que a machucava. Mas parecia que eram as paredes quem estavam ganhando esta luta, pois a garota em questão havia desistido antes mesmo de tentar. Talvez ela nem quisesse ganhar das paredes. Afinal eram as únicas que ainda a protegiam. Mas ela queria mesmo ser protegida? Talvez as paredes estivessem protegendo o mundo lá fora, do que se encontrava dentro: Ela se afundava em seus cobertores como se pudesse se afundar todas as lembranças de baixo do colchão, ou enterrá-los no quintal. Olhava pela janela, e pensava seriamente em abrir um buraco e enterrar o passado, ou a ela mesma. Digitava cada vez mais forte. E mais forte. Exagerava em cada palavra, só pra compensar o quanto estava de menos. Cada vez menor. Cada vez mais longe do que acreditava. Cada vez menos...