~ VELHO BARCO ~
Ali estás, velho barco, por uma corda atado à terra. Estás tombado, semissubmerso, o velho casco rasgado, o mastro quebrado, a madeira apodrecida, e, de sua pintura, apenas vestígios. Ali descansas. Balanças tão leve, talvez docemente a suspirar, embalado pelas canções de ninar das marolas...
Lembras? Vastos mares singraste outrora, sobre tanta vastidão de azuis e verdes... Tudo viste, e o que viste era sempre belo, e tornado ainda mais belo com tua presença: solitárias ilhas, céus e águas em caleidoscópio de cores esmaecidas ou fulgurantes. O tapete das noites exibia pleno sobre ti o firmamento, enquanto ao teu redor ondeava e se espelhava o brilho de infinitas constelações e luas. Teu leme era o coração e a vela teus sonhos... Quantas vagas, mansas ou impetuosas, jamais te engolfaram e tu te divertias com elas... Nevoeiros ocultavam mistérios... Quase sempre davas boas vindas ao raiar do dia ou adeus às mágicas nuances de um imprevisível, jamais igual, crepúsculo; e te extasiavas ante a visão de céu e mar se enlaçando em distantes horizontes...
Ah, velho barco! Lançar-te nestas venturas, que jamais temeste, hoje te é negado. Porém sei que não sofres. Do oceano ficas a receber ternas carícias das brancas espumas, em eterno vai-vem; e isto te enternece e te faz feliz. Tens o vento salgado a trazer-te lembranças e o murmúrio das águas te conta e relembra histórias dos pescadores que orgulhosamente conduzias em teu valente bojo. Sei que ainda ouves, e te embalas, saudoso, ao som dos cantos noturnos de sedutoras sereias ou dos furores de um Netuno tempestuoso...
Ranges sutilmente. Talvez almejes que desatem o nó da corda, para que tua corroída madeira se dilua definitivamente nas profundas águas, ou então, nestas mesmas águas, alegremente, flutue teu pó a refazer tantas rotas de pleno deslumbramento...
Sei que nada lamentas. Livre e conscientemente aceitas e te entregas, ao inexorável tempo que te perpetua...
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"Navegar é preciso..."; viver também!!!
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Agradeço bela interação de Ádria Comparini:
TRAVESSIA
Um barco semi-submerso, meio tombado, é encontrado à beira d água...na praia deserta, ao entardecer. É uma cena ao mesmo tempo bela e melancólica; mas a mulher que o encontrou, tem que fazer a travessia e então resolve encarar o desafio. Nem o aspecto envelhecido, nem a madeira começando a se estragar, nem a falta de pintura a fazem desistir e ela começa a recuperar a embarcação: Com um esforço sobre-humano e uma alavanca feita de um tronco de madeira que encontrou ali perto, ela consegue virar o barco e percebe que o tamanho dele é ideal para ela fazer a viagem. Então pega uma lixa, um balde de verniz e mãos à obra: Com força e cuidado vai recuperando a embarcação, ela se cansa, para, e recomeça...e a noite cai. Ela resolve dormir ali mesmo... Pega uma manta que traz consigo, se cobre naquela noite fria de outono, antes de dormir olha para o céu repleto de estrelas e a escuridão aos poucos vira dia. O amanhecer lindo a desperta, ela continua seu trabalho; é hora de pintar o barco: Escolheu um verniz naval, quer deixar a madeira com sua cor original, e o trabalho é feito durante toda a manhã. O barco fica tão lindo! Novinho e reluzente! Então chega a hora de partir, o destino é uma linda ilha que está bem à sua frente a alguns quilômetros de distância. Ela refaz o remo que estava quebrado bem pertinho dali e entra feliz dentro do barco e sai, mar a fora. O dia está lindo, o mar está calmo, ela então desata o nó que prende o barco agora em perfeito estado, e este cheio de gratidão e ternura se deixa conduzir por ela...A música suave das ondas enche imensidão, porque :
"Navegar é preciso e viver também!"
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