Não há tempo...
Não há tempo para dúvidas. Olho para o espelho e a imagem que vejo já não me assusta. Adquiriu contornos claros, cinzelados pelo tempo e pelos encontros com a vida. O que surpreende é que tenha adquirido também esta espantosa mobilidade, esta capacidade de dançar mesmo quando não há música, de flutuar ainda que não haja vento. Os olhos voltam-se então para a alma, espelho cristalino do que fui, sou e desejo ser. Desejo. Almejo. Antevejo luares espalhando-se pelo chão, coando-se pela renda irregular da folhagem das árvores, um sopro sutil sussurrando carícias, eriçando pelos, pelos descaminhos de pele e sonho. Sonho e planto a semente. Cavo a terra com as mãos nuas e derramo sobre ela os humores do meu corpo. Protejo os rebentos. Embriago-me na florada repleta de odores e o sumo do fruto escorre-me, doce, pela boca. Não há tempo para dúvidas. Nem para certeza alguma. Então descolam-se asas, antes úmidas de medo, e voo varrendo o céu para depois, olhos abertos, mergulhar no mar imenso de amores.
Sorocaba, 06/08/99