O deus incomum.
O deus incomum.
Depois de vagar por muitos caminhos, por espaços frios e áridos desertos, Zaratustra quer descer da altura da descrença para ver e explicar como surge um deus filho da imaginação dos homens. Passará por um continente singular, no que concerne à criação de mitos, não perderá tempo nos outros continentes, como o africano e o asiático, pois ao seu ver, lá os deuses são criações infantis. Não precisará discorrer sobre o óbvio, as mentiras recentes daquele povo louco para edificar uma crença única às custas de uma teologia armada.
Tomando posse de sua incansável envergadura real, parte para explorar o “Umbigo do Mundo”.Agora livre da loucura dos sábios descrentes, acredita ser capaz de compreender mais um fenômeno humano. Descendo à velocidade dos mortais, e andando no mesmo passo dos tolos crentes. Disfarçado no meio de uma multidão de cegos, Zaratustra se vê escalando uma região montanhosa forrada de vegetação aprazível e decorada por grandes obras de arte, grandes construções incomuns para serem frutos de trabalho humano.Dentro de uma peregrinação segue, como se cego fosse, escutando palavras inefáveis sobre um deus brilhante que habita nas alturas, e que só aparece uma vez por ano para receber sacrifícios.
O povo parece feliz. Até aí nada difere aos seus olhos, dos outros adoradores de deuses tiranos que visitara no oriente.
Todavia, algo lhe chama à atenção. Por onde andara, em todos os mundos religiosos, que conhecera os deuses, aceitavam sacrifícios diversos, como prata, ouro, carne, até virgens, para lhes servirem por algum tempo. Outros aceitavam filhos varões como oferta queimada.Entretanto, aquele povo nada revelara sobre a natureza dos seus sacrifícios. Isso era de fato, um assunto que merecia compreensão antes da chegada ao lugar sagrado. Então Zaratustra resolveu indagar de um velho que seguia os seus passos lentos.
-Vigoroso Senhor, eu sou novo nesse ritual sagrado, já percebi que esse deus que vós adorais, se abriga muito distante da morada comum dos homens lá da planície, de onde tomamos esta estrada. Muitos já se cansaram, outros pereceram sobre o forte calor. Tenho observado tua força incomum. Podes, por ventura, me esclarecer um assunto? O que esse povo perseverante leva como oferenda para seu deus que mora lá nas montanhas?
-Não levamos nada material, os suprimentos que carregamos são para o nosso próprio usufruto. Apenas lhe damos o coração, não precisarmos de mais nada para o agradar.
Zaratustra não compreende a primeira audição, o que queria dizer aquele provérbio cristão. –É, parece que aqui o povo tem uma forma de devoção mais evoluída -diz de si para si.-Um modo um tanto peculiar de adorar um deus. Esse parece desprendido de coisas materiais.
Todavia, chegando no alto do monte, Zaratustra vê com olhos estupefatos, uma cena inacreditável, isso para ele que nunca duvidou dos limites da loucura da crença. Mesmo para ele que jamais se chocara com algo bizarro que pudesse lhe fazer tremer. Dessa vez, impávido fica, seu corpo não reage, seu sangue pára de bombear, seus cabelos se eriçaram, suas vistas se turvaram. Sentiu um frio mortal, procurou a terra aos seus pés e não encontrou. De frente para um sol que brilhava radioso e soberano, aquele sol que lhe incomodara em seu dormitar na montanha gelada, do outro lado do mundo em que agora se encontrava, era um deus adorado por milhões de nativos dessa região, para ele desconhecida.
Num ambiente sagrado preparado para um fim especial, onde uma nação atingia o êxtase religioso em um ritual alucinante, Zaratustra vê uma cena macabra, bizarra ao extremo da sua concepção de andarilho de muitos mundos. Grandes tanques de pedras cheios de sangue, muitos postes com homens dependurados, sacerdotes sangravam as suas vítimas, lhes arrancavam o coração, e ainda pulsando, apontando para o sol, oferecia aquele sacrifício incomum.
Zaratustra, pálido, atitude comum a um mortal, busca forças, e faz um pergunta ao seu companheiro de jornada:
-Que visão do inferno é esta, meu caro senhor, chegamos tarde ou em lugar errado?
-Não te perturbes inocente estrangeiro! Isso que vês com os olhos da descrença, já é costume milenar, e pelo que me consta, todos os povos começaram a adorar o sol, a lua, ou as formas da natureza. Por que te incomoda dessa maneira, nosso ritual sagrado?
-Havias me dito venerável senhor que teu povo servia apenas com o coração, nem eu, nem ninguém poderia inferir que se tratava de oferecer um coração literal. E como é que se escolhem as vítimas para tal insanidade teológica?
-Não te aflija grande curioso dos assuntos alheios, não há injustiça nesse particular.Esses homens que vês sendo desmembrados para oferta ao grande espírito dos céus, são culpados de sangue, condenados por crimes vis. São de fato criaturas sem reabilitação social cometeram crimes atrozes, não merecem viver em sociedade. Portanto, são usados para este nobre “fim”. Já vejo um grande progresso nesse respeito. Antes eram oferecidos os filhos dos pobres como oferenda. Quando os pais não tinham capacidade econômica para educar mais de um filho, então o que nascesse depois do primogênito era levado ao sacerdote para o sacrifício!
-Então foi esse progresso que valorizou o povo e depreciou seu deus?
-Vendo por esse prisma sim. Todavia, eu como sou o mais antigo entre o povo, diria que se trata mesmo de uma evolução. Partindo do pressuposto de que os deuses só vivem na imaginação das almas alucinadas, avessas ao mundo físico, e o fato de usarem a adoração para fazerem uma limpeza moral entre o povo, tu deves acudir que eu esteja certo em afirmar o que te digo: morrendo os deuses, vivem melhor os homens.
Zaratustra não concorda nem descorda, só acorda de mais uma viagem pelo mundo dos sonhos dos mortais.