prosaico absurdo II

Domingo você acorda e se dá conta de que ela se foi.

De certa forma isto trouxe à tona a sua dor e sua solidão, ainda que envolvidas em atitudes pusilânimes e auto-piedade.

Corrói embora seja engraçado. Parcos recursos para manter-se de cabeça erguida.

Tantos anos vividos sem realmente se importar com ninguém e agora ser trazido desta maneira de volta à realidade assusta qualquer um.

Ela se foi e levou embora uma decepção pragmática. Só você é que permaneceu com suas mágoas que purgaria por meses, anos.

Só agora você começa entender que está livre e não tem mais nada. Tudo que era devaneio e capricho desvaneceu-se.

Acabara então de existir logo depois de morrer. Ficou decepcionado e não quis aceitar. Estava viciado em sentir o ritmo de tudo e o entusiasmo conforme a pulsação e necessidades alheias, as dela, no caso.

"Cada ocaso tem seu destino e sua putrefação!", sussurrou-lhe um Ente em aparente desatino, conforme lhe pareceu. A carne dela apodreceria por um longo período nas paredes do seu intestino grosso.

Primeiro quis empreender algo que chamou de reconquista espiritual, esquecendo-se de que seres carnais precisam se amar também através dos estímulos da matéria e instigados até certo ponto pela embriaguez dos sentidos e da paixão.

Caminhar para algum tipo de fé era algo imprescindível, qualquer tipo de fé, desde que não fosse em si mesmo, pois esta você considerava irremediavelmente extinta. Era preciso queimar no fogo eterno para extirpar a fogueira minúscula de suas próprias vaidades.

Pisando sobre labaredas seguiu em frente caminhando rumo apontamento de seu nariz e guiado por aquilo que não ousava chamar de má sorte. "Tudo aconteceu assim!", era frase que recitava para buscar algum conforto.

Você ainda não conhecia o General. Seguia aflitivo por dias e meses e por pouco não desejou por fim ao sofrimento de maneira a sucumbir ao próprio extremo em desapontar-se se precipitando por alguns abismos em série.

Derrocou, derrocou e caiu vezes sem conta. Pensou até mesmo em não mais se levantar. Recobrou as forças após um longo estado de prostração meditativa e perambulante. Visitou lugares sombrios e paragens remotas de expiação e angustias lunares de soberba e tormento.

Precisava ainda destruir ao redor para almejar o novo.

Sabia que alguma força em breve o alcançaria pelo caminho, mas ainda não sabia como. Andava a esmo à espera de um dia azul e uma abóboda celeste.

Dedicou-se a entrever cataclismos e sobrecarregar pensamentos soturnos em forma de uma literatura de cunho obsessivamente pessoal. Escrevia textos que remetiam ao egocentrismo e ao álcool por puro desbotamento e ascese cínica e pueril.

Criou caso com todos e se distanciou de quase tudo quanto fosse banal ou cotidiano, enclausurando-se sorumbático e solene em sua torre empoeirada de cristal e marfim. Pisando duro e se fingido de espantalho emulava seus pesadelos e queixumes.

"Ainda não é chegada a hora!", repetia insistentemente cochichando em seu ouvido mirando-se no espelho. "Embora pálido, um tanto quanto combalido e enrugado, você ainda não está morto", pensava às vezes cobrando-se quanto a voltar a seguir um fluxo sadio das coisas.

Olhou pela janela e viu que ainda era domingo.

Gato Véio Ferreira
Enviado por Gato Véio Ferreira em 23/04/2012
Reeditado em 25/04/2012
Código do texto: T3628610
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