[Tempos e Ladeiras – Resposta à Maria Odila]
[... but I do hope you fly me to the moon!]
Tempo I
Primeira ladeira — Ladeira do Atamento
Não quero largar alguém e não quero ser largado por alguém; o meu desejo é que me lança: tudo que eu quero, tudo que eu posso é estar no ato de nós dois — não importa quanto dure o ato — e depois do ato, não quero fazer perguntas para não esperar pelas não-respostas que usualmente se dão quando se desfaz o nó do ato, isto é, quando há o desate.
Segunda ladeira — Ladeira do Desatamento
Queria conseguir viver sem me atar a ninguém; mas isso é impossível — existencialmente impossível — já me disseram. Assim eu, que apenas me desatei de outra, ato-me a você que já se atou a outro de quem, agora, se julga desatada. Pronto, estamos atados? Então, já podemos concluir que somos uma fraude: no fundo, sabemos que nunca nos desatamos plenamente de alguém que esteve ontem em nossa cama.
Fim da primeira ladeira — Ladeira do Ir em Frente.
Menti nas linhas acima: não há desate nesta vida; há o ir em frente, mas sem apagar os rastros, sem repisar caminhos jamais esquecidos, sem esquecer o toque de mãos em nossas carnes, e sem esquecer aqueles uivos de prazer e dor. Mas somos milagrosamente renováveis: temos as pontas das meadas em nossas mãos; escolho você, e você me escolhe; vamos a um novo atamento? Jura-me amor eterno? Jura entardecer comigo? Então, estamos atados... até o desate! Ah, mas não há desate possível, desate de todo, não há! E que importância tem isto se eu jurei, se você jurou e se já estamos em ato? É só ir em frente, ladeira abaixo... novos uivos, nova dor, nosso gozo — táctil umidade de nosso gozo — nova vida, gozo nosso, vida nossa, vida nova! Gozemos até doer, estamos em ato! A vida é um perdimento: logo, viraremos esta página que estamos a escrever!
Tempo II
Primeira ladeira — Ladeira do Odre Podre
Atos e desatos; impossível seguir rastros ladeira acima! Confuso, eu? Você acha mesmo? E quem disse que eu gosto de me explicar... eu, que nunca soube o que é viver? Viver: uma corpórea sensação apenas? Viver: uma tortura de ser? Viver: um sofrimento inútil? Viver: uma paixão à-toa? O que é viver... se eu já vou morrer, se talvez já esteja morto? Viver para quê, por quê, se minha existência é como um vinho aguarentado, guardado num odre cadente? Viver por quê, se a vida é esse eterno mistério escondido de mim, mas dentro de mim que desfaleço, que desapareço na neblina do seu olhar?
Segunda ladeira — Ladeira das Ilusões
Entro no meu corpo tal como entro no meu carro; meus olhos guiam-me pelas ruas, minhas pernas transportam esse ser vestido por dentro da massa corpórea. E então, destaco-me de mim: coloco uma câmera sobre minha cabeça, e enquanto rastreio o meu passado, assisto o filme do Agora de mim, e no teatro da mente, eu vejo o Futuro como um abismo escuro. Desmontei-me, apeei das ilusões e do Agora, descompreendo tudo, razões, desrazões... acho que eu só queria mesmo não ser...
...Isto é, não queria ser nada, e desejaria nunca ter sido nada para ninguém. Não me desminta: estar em ato com você é ser o objeto escuro-táctil do seu desejo que tem a finitude, ou a impermanência de um fogo-fátuo. É só o que eu quero; é só do que precisa o meu desejo para se manter aceso. Grite-me isso, sim? Pago-lhe com uma noite inteira de prazer... quando amanhecer, ainda estaremos naquela estrela, indo ao léu...
Tempo III
Última ladeira — Ladeira do abismo do futuro
O futuro: a desintegração, a bomba aniquiladora das falsas esperanças de cair numa oceânica eternidade! Não se retorna de onde nunca se foi, e já que do nada viemos; só podemos retornar ao nada — mas o que é o nada? Isso lá é pensamento de quem está em ato? Carne, minha carne, o que será de mim, que me descuido de ti para deixar de pensar em você que está em ato comigo? Vamos, vamos juntos para o nada... em ato? O futuro é um abismo ao fim dessa ladeira, mas não tenhamos pressa!
[De Minas venho, mas o que sei de ladeiras? Sei nada... mas aprendi a desconfiar...]
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[Dado e passado no Desterro, ainda no século XX]
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... E eis o texto que a Maria Odila me enviou para eu dar uma "opinião"; ela incluiu esta letra de música... eu nunca soube por quê...
FLY ME TO THE MOON
[Bart Howard]
Fly me to the moon and let me play among the stars
Let me see what spring is like on Jupiter and Mars
In other words
Hold my hand
In other words, darling,
Kiss me
Fill my heart with song and let me sing forever more
You are all I long for, all I worship and adore
In other words
Please be true
In other words
I love you
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Hoje é o primeiro dia.
Resolvi largar de você.
Nada fiz. Não lustrei sapatos, nem arrumei estantes. Dormi. Acordei. Nem chorei.
Olhei para o lado. Cama enorme, vazia. Nem eu me sentia estando ali. Queria a certeza de nunca mais acordar te vendo.
Olhei, sulquei a cama com minha dor, mas não chorei. Levantei e saí do quarto.
Não fui banhar-me. Recusei-me a fazer a rotina da lembrança. E por outro lado, sei que não suportaria novidades. Nem a rotina, nem a saudade. Não fui ao banho. Nem me lavei, nem chorei.
Voltei à cama.
Estava procurando sonhos, tentei não achá-los. E não achei. Preciso desistir de você.
Não vou à praia. Nem poderia. Feito vento ou chuva mansa na água fria, fui me respingando de você, quando ainda existia em mim. Quando eras meu e eu só tua. Possessivos corações, ardorosas mãos... precisava, eu sabia... deixar você.
Muitos foram os dias, vários os meses, poucos os anos, em que segredei, só a mim, que tinha você.
As marcas do teu amor, nunca ostentei, eram minhas, muito nossas. Uma felicidade que nunca dividi.
Estive com você sem que os outros, todos os outros, soubessem.
Meus suspiros agora preenchem este espaço. Não consigo andar pela casa sem tropeçar em alguns, pisar em outros. Mas não chorei. Não vou chorar.
Minha cabeça dói e não há aspirina que resolva.
Você ainda não sabe, mas larguei de você.
Como a Zita-arrumadeira quando chega tentei (ai, ai). Sou... era... ainda sou... tão preguiçosa... Bem, arrumei aqui onde estou. Criando um véu de silêncio, cobrindo os cds com tua manta — que guardei — cortando as músicas que calei e os sons que abafei. Nem arrumação, nem cantoria. Matei tua sonoridade na minha vida.
Silenciei. A mim e a você.
Tenho, você bem sabe, pavor. Não agüento a dor, tenho medo da solidão, dos sentimentos. Não agüento me ver amiga dos amigos, já que eles não sabem. Terei que ser uma não-eu, uma outra, aquela que eles conheciam sem saber que eu já era tua.
Sem nem você saber, já te quero de volta. Mas não posso.
Larguei você. Você ainda não sabe. E quando souber, estarei tão bem, tão boa, que terei largado de você sem dor. É o que pensará. Não tenha dó de mim. Nunca tenha.
Nunca saberá o quanto deixei de mim em ti.
Não quero viver sozinha. Nunca quis. Mas vivi.
Eu nem te conhecia. Nem me conhecia. Nem me conheço mais. Nunca soube quem eu era. Precisei deixar-me cair em você para saber do não, do não sei, do talvez. Tudo isso para saber que alguma vez... não tua. Nem de minha.
Sou nada de ninguém.
E foi para me encontrar que resolvi remediar minha vida com a tua ausência. Mediquei-me sem conhecimento algum, longe das doutrinas que você me ensinou. E Aristóteles, tão falado por ti, que me perdoe, mas o amor jamais pertencerá às doutrinas da lógica e da ética. Nem filosóficas, nem pragmáticas, nem de tudo o quanto me falavas, quando nu, andavas pela casa, recitando clássicos, me ninando poesias, resmungando filosofia.
Fui respirar amor, era a época, aquela.
Quem sabe um dia eu me encontre. Mas será sem você.
Precisava largar de você.
Precisei largar de você.
Tenho que largar de você.
Cansei. Nem o ar me chega. Pensei em você. Consegui respirar. Não acreditei. Estou te mandando embora e ainda sinto você. Não chorei. Não vou. Nem gritar.
Preciso me concentrar. Fui ler.
Desci.
Minha cadeira, colcha desfeita, almofadas no chão. Acho que dormi parte da noite sentada. Olhando a TV desligada, estava vendo você.
Sentei, pensando refazer os passos da noite anterior, quando ainda te amava.
Porque raios eu tinha que ter dormido?
Por teimosia, birra até, tirei do nada, nossa... — na verdade sempre foi minha — a nossa música.
Fly me to the moon
De que me adianta ir à lua, cantar, ver estrelas, Marte, Júpiter. Queria era te cantar, te contar, te amar.
Fill my heart with song
Sou contra ver planetas. ODEIO cantar... cantar faz chorar, faz lembrar.
Fiz meu mantra do dia:
Não vou quebrar minhas coisas. Não vou chorar. Não vou quebrar as coisas. Não vou te amar. Não vou chorar... não vou te amar.
In other words
In other words
In other words
CHEGA!
Te deixei hoje.
Vou te deixar.
Sei te largar....
Saberei.
Preciso.
Sofrer é verbo
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Em tempo: eu não sei quem é a "Maria Odila", nunca vi! Encontrei-a numa sala de chat... conversamos, ela viu alguns textos meus. Depois, enviou-me o texto acima, para que eu desse uma "opinião"... mesmo sabendo que, no mundo literário, eu não sou nada depois de ninguém ... Acho que foi isso... ou quase isso...
Eu nunca mais soube da Maria Odila... também não me lembro se, de fato lhe enviei esta "resposta" acima... ou pior: alguma resposta - o que mais faço nesta minha vida senão descuidar-me de pessoas assim, interessantes, e sensíveis como a Maria Odila?
Em todo o caso, fica aí esta "resposta", esta carta-resposta... lançada no tempo-oceano da internet... Tenho uma fraca esperança de que eu receba uma resposta! E afinal, eu mereço uma resposta?! Acho que não...