[Por uma Palavra!]

[As sofridas instâncias da linguagem, esse pacto entre as gentes...]

Certa vez, a firmeza de uma decisão de minha mãe, e a Estrada de Ferro Mogiana me salvaram de uma doença ruim — saímos de Araguari, e fomos para São Paulo! Antes, minha mãe juntou o que podia, e comprou-me um corte de lã, para fazer uma calça de "perna comprida" — "Ah, meu filho, São Paulo faz um frio, um frio de doer!"

Passados uns dias, ela levou-me a um velho alfaiate. Ele tirou as medidas, riscou aqui e ali... Ele faria o corte do tecido, e ela mesma iria costurar na máquina da minha irmã.

Quando chegamos a casa, ela parecia preocupada... "Ah, corre filho, vai lá no seu Teófilo e diz para ele que a mamãe quer que ele aumente dois dedos na largura das pernas, acho que estão apertadas para essas suas pernas grossas; mas corre, senão ele corta o tecido daquele jeito mesmo!"

Eu corri... e enquanto eu corria, eu pensava em São Paulo... e já prelibava a maravilha da longa viagem de trem... Ia ver de novo a maria-fumaça, no anoitecer, soltar aqueles tufos de fumaça com fagulhas brilhantes... o fiscal do trem anunciar..."Igarapava, Igarapava!... Que palavra é essa que me dá tanta saudade... o que será que quer dizer? O quê? Eu ia ver o vento ondular as ervas-cidreiras plantadas junco ao enrocamento dos trilhos... E depois, emocionar-me com a rapidez louca dos trens elétricos, após a baldeação em Jundiaí...

E enquanto eu corria pelas ruas de Araguari, a minha "Cidade Perfeita", o pensamento levou-me para São Paulo ..., eu pensava na Rua Clélia, na Rua Coriolano, no ronco dos motores dos enormes ônibus do Expresso Brasileiro... na majestosa Avenida São João, no Cine Metro... o Arouche... os bondes... os carrinhos de chá... ah, e nos enormes e deliciosos pães, na "quitanda" [estranho nome para um menino mineiro falar, mas enfim, os paulistas falavam assim mesmo, quitanda] de bananas nanicas, pintadinhas, pintadinhas... doces, doces, um cacho era, pouco para mim!

Pronto — cheguei na alfaiataria! Sem tomar fôlego, eu disse: "Seu Tiofo, a mamãe disse que é para o senhor diminuir dois dedos na largura das pernas!" E ele: "Diminuir, diminuir?!" Olhou as minhas pernas: "Mas que esquisito... que esquisito... mas se ela disse...". "Sim, é isto mesmo," eu confirmei — "diminuir dois dedos na largura!"

Acho que ela não percebeu na hora, ou tentou ainda assim... costurou a calça... e aí, ela viu, e chorou... "Filho, era para aumentar, e não diminuir! Não ouviu a mamãe falar?!" Eu vi as lágrimas naquele rosto moreno... e já soluçando: "Ai, mãe, eu ouvi... mas esqueci... errei... e agora?!" Ela olhou-me fundo, fundo... "Não tem mais jeito... e não temos mais dinheiro para comprar outro tecido; a mamãe vai ter de cortar essas "capas-de-espingardas" que não vão entrar nas suas pernas, e você vai usar assim, calças curtas, e apertadas, pois o seu Teófilo estreitou até mais em cima".

Ah... como a gente nomeia as coisas do mundo... como é a linguagem da gente... a linguagem da emoção, da revelação, ainda que em meio à tristeza, e à pobreza: foi a primeira vez que eu ouvi esta expressão, "capas-de-espingarda", para se referir as pernas de uma calça apertada! Nunca esqueci!

Dias depois, em São Paulo... mês de junho, tempo inclemente... e nas madrugadas geladas, cinco horas manhã, para entrar na fila da pediatria, meus joelhos batiam um no outro, de tanto frio, eu me lembrava: "Seu Tiofo... a mamãe disse...". Mas eu aguentei, e aguentei firme o rigor do inverno paulistano. Então, eu tive uma dura e literalmente gelada apreensão do sentido de pobreza! E enquanto eu tremia de frio nas pernas, eu-menino pensava: "uai... mas foi só uma palavra, uma só, e olha eu aqui, com os joelhos roxos de tanto frio!"

Ah, outras descobertas que fiz nesse tempo: o impactante sentido da palavra necrotério [desgarrei-me de minha mãe, e sem ela ver, eu fui entrando no prédio, atraído pela palavra estranha... ah, aquelas mesas de pedra, os corpos — saí zunindo de lá!]. E logo após a torturante manhã passada na Santa Casa, os exames, as injeções... mamãe comprava-me um pastel de palmito, que eu devorava com avidez — e isso não tinha em Minas!

E tem mais: tem um sentimento que eu não posso entender até hoje... se é que a gente consegue entender algum sentimento... é esse estranho amor que eu tenho por São Paulo... estranho, e comovente, e profundo... Onde já se viu... afinal, é uma cidade, e não uma mulher... Mas aí, já é loucura antiga, enraizada, não tem cura... Será que vem de eu sentir o frio daquelas manhãs geladas, passadas nos corredores da Santa Casa? Será que vem de contemplar a garoa caindo nas tardes da Avenida São João? Ou do burburinho do Largo do Café? Ou dos salões do antigo Correião? Do Mosteiro de São Bento? Da Sé? Da República? Do Jardim da Luz? Do Ipiranga? Da Estação da Luz, onde eu chegava de Minas? Sou pequeno demais para entender isso...

... Também, não importa, e nada importa mesmo, tudo passa!

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[Desterro, 05 de abril de 2012]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 05/04/2012
Reeditado em 12/07/2012
Código do texto: T3596790
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