Auto-retrato

Neta de mulato filho de negra escrava e branco senhor português, recebi ainda herança indígena, espanhola e francesa. O sangue miscigenado passeou por terras do Mato Grosso, da Bahia e de São Paulo. Nasci sorocabana e feia, dizia minha avó, madrinha de minha mãe que ficou órfã aos quatro anos. Pequena e magra, trazia no lado direito da testa, quase no olho, imenso hematoma, resultado do fórceps de alívio. Acima brotavam do crânio poucos fios de cabelo liso e preto. Daí chamar-me, minha mãe, de Professor Nimbus: um personagem de quadrinhos, eu acho. A cicatriz, trago ainda hoje sob os cabelos, já nem tão pretos e nem tão lisos. Morena jambo, diria o mundo fashion, sou na verdade parda, mesmo que a certidão registre branca. Já fui mais magra, muito mais, mas não sou gorda, embora tenha saltado alguns números nas etiquetas das roupas. Pés pequenos, tenho mãos e olhos idem. Estes últimos amendoados e negros como eram os cabelos. A boca, contudo, é larga, rasgada, carnuda. Dentro dela dentes brancos e alinhados e uma língua que nem sempre consegue manter-se em seu lugar. Falo demais. À vezes, falo bobagem. Muitas vezes, muita bobagem. Não sou alta, mesmo que às vezes sinta-me grande e, aos sete anos acreditasse que, aos dez, seria enorme. Ao despontarem-me os seios, eram firmes e pequenos. Hoje, não são tristes, mas é curioso que só agora falemos a mesma língua. A maternidade, pela qual acrescentei ao cadinho o sangue italiano, arredondou-me o corpo até então esguio. Amamentei e não me lembro de que, em outra época, tenha me sentido mais linda. Os anos vieram e estou prestes a completar quarenta, em novembro do ano que vem. A aparência é basicamente a mesma: algumas vezes, alguns mais desatentos, dão-me alguns anos a menos. Não ligo e não desligo. O espelho ainda é generoso comigo apesar das dobras, dos vincos e dos rangeres. Graduada, pós-graduada e ainda curiosa, volto-me silenciosamente sobre a minha própria carne e banho-me em químicas olorosas, unto-me de emulsões deslizantes e envolvo-me em felpudas toalhas, sedosas lingeries e sonhos nevoentos. Soltos os anéis dos cabelos, em cuidadoso desalinho, fluem-me idéias. Entre elas, a de ser bela. Alimento em mim uma inquietude jamais vista, mesmo nos anos adolescentes, e uma serenidade senhora de minhas dúvidas que, aparentemente, não se dá conta do quanto é paradoxal ser inquieta e serena. Quanto mais, quantas mais permito que nasçam, mais sou eu.

outubro/97

Raquel DPires
Enviado por Raquel DPires em 29/03/2012
Reeditado em 08/04/2012
Código do texto: T3583829
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